13 de out. de 2018

O debate presidencial é possível (basta ter boa vontade e aceitar que o ótimo é inimigo do bom)



Se nós fizemos, com uma câmera apenas e recursos limitadíssimos na época, tenho certeza de que a Globo, a Record, a Band, o SBT também conseguem.


Por José Carlos Fineis


Eleição precisa de debate. 

O eleitor tem o direito e a necessidade de saber o que os candidatos pensam sobre assuntos importantes de governo e sociedade.

Compreendo que um dos candidatos esteja limitado fisicamente para comparecer a um estúdio, ficar horas em pé, submeter-se ao estresse tremendo que uma confrontação direta com o adversário representa.

No entanto, com criatividade, tecnologia e boa vontade, pode-se fazer o debate de maneira diferente, respeitando-se as limitações físicas do candidato.

É claro que o resultado não será o mesmo, porque perde-se a oportunidade de réplica e tréplica. Mas o ótimo é inimigo do bom. E o bom é melhor do que nada.

Pode-se definir uma pauta comum de perguntas, e designar duas equipes de jornalistas e técnicos para comparecerem, no mesmo horário, aos locais em que os candidatos estiverem, a fim de gravar as perguntas e as respostas, observando-se critérios rígidos de tempo.

Tudo isso, claro, sob a fiscalização de observadores de ambos os partidos.

Obviamente, os candidatos terão apenas uma chance de responder, e as perguntas serão, posteriormente, publicadas na íntegra.

Com um pouco mais de sofisticação, pode-se introduzir um bloco de perguntas entre os candidatos, definindo-se, por exemplo, que as perguntas de um candidato ao outro sejam encaminhadas pelos assessores às equipes responsáveis por colher as respostas, apenas dez minutos antes do horário marcado para as entrevistas (evita-se assim qualquer risco de vazamento e preparação prévia de respostas por assessores).

Em 1996, quando este escriba, a Sandra Nascimento e o Werinton Kermes produzíamos o programa "Extra! A Revista de Sorocaba na TV", os então candidatos Renato Amary e José Antônio Caldini Crespo negavam-se a debater entre si.

Nós então reunimos um grupo de jornalistas da área cultural, que era nosso foco, pedimos emprestado o auditório da saudosa Oficina Grande Otelo, e convidamos os candidatos para duas rodadas de entrevistas no mesmo dia, em horários diferentes. 

As regras eram simples e transparentes, e foram aceitas pelos candidatos. 

As mesmas perguntas, feitas pelos mesmos jornalistas. Só uma chance de responder. Tempo limitado para as respostas.

Depois editamos, sem cortar nada: a pergunta, a resposta de um, a resposta de outro.

Produzimos dessa forma uma espécie de debate virtual, e com isso abrimos a oportunidade de cada candidato expor suas opiniões e propostas para os temas abordados.

Se nós fizemos, com uma câmera apenas e recursos limitadíssimos na época, tenho certeza de que a Globo, a Record, a Band, o SBT também conseguem.

Se precisarem de uma forcinha, podemos ajudar, pois já temos know-how no assunto.

O que não pode é simplesmente não haver debate. 

O eleitor vai escolher baseado em quê? Em meia dúzia de palavras escritas por marqueteiros? Em memes e fake news espalhados pelas redes sociais? Em jingles bonitos e fotos dos candidatos abraçando criancinhas?

Ainda há tempo de acabar com esse impasse e proporcionar aos eleitores brasileiros a informação de que eles necessitam para votar conscientemente.

A fórmula está aí. Basta usá-la. Ninguém, como já se pôde constatar, está debilitado demais que não possa dar uma entrevista de duas horas no máximo.

O ótimo é inimigo do bom.

Se não dá pra fazer em estúdio, faça-se como as circunstâncias permitirem. Mas faça-se, porque eleição sem debate é eleição fake, fajuta, conduzida.

Debate já!

Debate agora!

Que os candidatos falem livremente o que e como pretendem fazer para entregar aos brasileiros aquilo que prometem.


(Foto: Pixabay)



1 de out. de 2018

A história de como o PSDB abriu mão de entrar no palácio pela porta da frente e colocou Bolsonaro e o PT no segundo turno


Não tinha dúvidas de que seria muito mais inteligente os tucanos esperarem dois anos para vencer as eleições (talvez com facilidade, pois eram então o polo oposto do PT) e receberem a faixa presidencial em um dia ensolarado de Brasília, com aviões da esquadrilha da fumaça a cruzar o céu e música de banda a encher o ar -- e subirem a rampa do Palácio do Planalto com passos dignos, para ingressar no poder pela porta da frente

Por José Carlos Fineis(Revisto e ampliado em 3/10/2018)

Escrevo a uma semana das eleições e acredito que muita coisa pode acontecer nos próximos dias. Até mesmo o candidato Ciro Gomes (PDT) ultrapassar Jair Bolsonaro (PSL) e ir para o segundo turno contra Fernando Haddad (PT). Ou ultrapassar Haddad e enfrentar Bolsonaro no segundo turno.

Antes de prosseguir, preciso alertar que nunca acerto previsões. Achei que Trump não ganharia, ganhou. Achei que não dariam o impeachment em Dilma, deram. Achei que não condenariam Lula por causa do tríplex, condenaram. Aqui que na minha cidade (Sorocaba, interior de São Paulo) o então candidato a prefeito José Crespo não se elegeria, se elegeu. Achei que o PSDB não confiaria em Temer para governar o país, confiou. Achei que os tucanos não iriam para o governo Temer, foram. Achei que Temer cairia quando o escândalo da JBS veio à tona, não caiu. Achei que Cunha jamais seria preso, foi. Enfim. Não tenho bola de cristal. E talvez meu defeito seja analisar a política pela ótica da coerência, quando o que mais falta à política é coerência.

Apesar de não ser nenhuma Mãe Diná, no entanto, preciso deixar registrado, neste momento, que alguma coisa eu antevi com clareza dois anos atrás – e isso tudo está se concretizando agora. Em agosto de 2016, quando o Congresso tirou do poder Dilma Rousseff, eu tive uma antevisão do futuro e vi a história dos anos seguintes se desenrolar diante dos meus olhos. É essa história que escrevo agora. A história de como o PSDB, em sua ânsia infantil de chegar ao poder, abriu mão de entrar no palácio pela porta da frente, e colocou Fernando Haddad e Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018.

Quando começaram a falar em impeachment da Dilma, eu, que não me considero especialista em política, mas sou obrigado a pensar em política devido a meu trabalho, considerei com vários colegas:

– Por que fariam isso? O governo Dilma não está indo bem. A popularidade dela despencou. O desemprego está aumentando. Por que não esperariam dois anos para vencê-la nas urnas, legitimamente? Não acredito que vão tirá-la agora e jogar o país numa aventura, nas mãos do Michel Temer, que todos sabem ser um político fisiológico, que sempre fez da política um balcão de negócios! Eles (os tucanos) só vão se queimar se fizerem isso.

Na minha forma de ver, eu acreditava que seria mais proveitoso para os tucanos deixarem Dilma desidratar com a crise, e construir um discurso baseado nos erros da política econômica do PT. Não tinha dúvidas de que seria muito mais inteligente os tucanos esperarem dois anos para vencer as eleições (talvez com facilidade, pois eram então o polo oposto do PT) e receberem a faixa presidencial em um dia ensolarado de Brasília, com aviões da esquadrilha da fumaça a cruzar o céu e música de banda a encher o ar -- e subirem a rampa do Palácio do Planalto com passos dignos, para ingressar no poder pela porta da frente.

Esse seria, aos olhos de qualquer pessoa que não estivesse enlouquecida pela ideia do poder instantâneo, o desenrolar natural dos fatos. E mesmo que Lula tentasse se candidatar, o PT provavelmente estaria tão desgastado com a crise – e o fantasma da crise, fortalecido diuturnamente pela Globo, Globonews, Estadão, Época, Veja e IstoÉ – que o candidato tucano teria grandes chances, pela primeira vez desde FHC, de ser eleito presidente, e assumir para um mandato legitimamente conquistado.

O que se viu foi o contrário. Optou-se pelo impeachment, que para muitos foi um golpe, e, para meu maior espanto, José Serra, Aloysio Nunes e companhia bela não só apoiaram Temer em sua investida pirata para tomar o poder como embarcaram em seu governo, assumindo ministérios. Sinistros, entraram no governo pela porta dos fundos, num dos capítulos mais constrangedores da história desse partido.

(Aqui é bom abrir um parêntese para que eu expresse minha opinião sobre um fato que julgo relevante. Dizem os antipetistas que foi o PT quem fez de Temer vice. Isso é fato. Mas quem fez de Temer presidente foi o PSDB, aliado ao que existe de mais radical na direita – ressuscitada com o MBL e afins – e ao que existe de mais fisiológico no Congresso.) Ponto, parágrafo.

Fez-se a ruptura, dentro da lei, como dizem. Uma presidente eleita foi deposta por um negócio (pedaladas fiscais) que, em outra conjuntura política, valeria quando muito um puxão de orelhas do Tribunal de Contas da União. Tivemos dois anos de governo ultrajante, o mais desastroso e impopular da história. A pauta patronal, ditada pela Fiesp, tornou-se prioridade nacional. Votou-se a Reforma Trabalhista sem discussão alguma com a sociedade. Metade dos amigos de Temer estão presos; ele próprio e a outra metade resistem porque ainda têm o controle do Congresso e foro privilegiado. 

É até estranho que alguns tucanos se digam arrependidos por terem embarcado nessa aventura. Arrependimento a gente sente quando faz algo que não imagina que vai dar errado. A autocrítica do ex-presidente do partido, Tasso Jereissati, não tem nada de novo além do fato de que alguém do PSDB, finalmente, assumiu o erro. Diante do fiasco do governo Temer, alguns tucanos pediram para ir ao WC e não voltaram mais. Serra teve dores nas costas. Outros estão lá até hoje, ao lado de figuras suspeitas como o Gato Angorá, terminando de sujar suas já enlameadas biografias.

Aécio caiu em desgraça por um desses acidentes de percurso. Seria a vez do Serra ser o presidente. O sonho de uma vida inteira poderia se realizar, por fim. Mas cadê Serra? Está na moita, esperando que o Supremo arquive o inquérito sobre os vinte e tantos milhões que recebeu a título de “caixa dois”. E, mesmo que não estivesse denunciado, seu partido não teria, como se diz, musculatura para correr os 100 metros com barreiras da campanha eleitoral.

Abriu-se um vácuo de legitimidade no poder. Jair Bolsonaro, com seu jeitão de colega pateta que todo mundo tem – aquele que fala bobagem pelos cotovelos, conta piadas sujas e todo mundo gosta porque é meio néscio e ninguém leva a sério –, ocupou o espaço espertamente, apresentando-se como o primeiro e único antipetista, que não só vai consertar os problemas do país mas também os que ele imagina que existem na nossa família. E muitos o abraçaram, ou porque se identificaram com ele, ou porque acreditaram em suas promessas, ou porque veem nele alguém capaz de afastar o risco de um novo governo petista.

Lembrem-se: o polo oposto de Lula e do PT, pelo transcorrer natural dos fatos (sem impeachment, com Dilma governando até o fim), seriam os tucanos. Foi assim desde 1994. Em nenhuma outra circunstância histórica, senão nessa conjunção muito particular de fatores, Bolsonaro deixaria de ser o tradicional bufão do baixo clero do Congresso para se tornar um candidato a presidente levado a sério.

Neste momento, vejo um Alckmin tentando desesperadamente colocar-se como o único capaz de vencer Haddad no segundo turno, quando na verdade, se existe alguém com possibilidades de ultrapassar Bolsonaro ou Haddad na reta final, é Ciro Gomes, e olha lá. Os próprios tucanos já desistiram de sua candidatura. 

Vejo a Globo dando destaque para o #elenão e a Veja publicando dossiês secretos sobre Bolsonaro. Seria por amor ao jornalismo ou porque as pesquisas constataram que Bolsonaro pode não bater Haddad no segundo turno, e se apavoram com a perspectiva de terem de engolir um novo governo petista?

Acredito que o Brasil, hoje, divide-se em duas grandes forças políticas: o PT e os que são contra o PT. Se os votos do Bolsonaro forem compostos por dois terços de pessoas que votam nele, e não contra o PT, talvez seja muito. O antipetismo arraigado é mais forte que o bolsonarismo. O mais provável é que dois terços sejam de antipetistas e um terço, de eleitores incondicionais do ex-capitão.

Agora, façamos um exercício matemático. Diante da possibilidade de vitória de Haddad no segundo turno, pelo menos metade dos eleitores de Bolsonaro – os antipetistas -- pode debandar, já no primeiro turno, para o candidato que tiver mais condições de vencer Haddad. E o voto útil, neste caso, tem nome: Ciro Gomes. Que está longe de representar a direita, mas pelo menos não é do PT.

O mesmo voto útil pode migrar no sentido contrário, para Ciro, se eleitores de Haddad porém não petistas incondicionais desconfiarem que ele tem menos chances que o petista de bater Bolsonaro.

Está é uma medição de forças entre os que rejeitam Bolsonaro veementemente e os que não admitem o PT de volta ao poder. Então, os eleitores tendem a votar no primeiro turno pensando no segundo. Será uma votação extremamente pragmática e movida a repulsa, mas que a paixão.

O voto útil antiPT poderia ser de Alckmin, se ele não fosse tucano, ou se os tucanos não tivessem embarcado no sonho delirante de chegar ao poder via impeachment e via Temer. A maldição toda da crise, que estava nas mãos de Dilma e pelo rumo natural das coisas reduziria a quase nada a força eleitoral do PT -- até porque a oposição minou seu segundo mandato com pautas-bomba e praticamente travou seu governo --, foi assumida festivamente pelo PSDB, naquele momento de votos "sim" com bandeiras do Brasil nas costas, de cartazes com a frase “adeus, querida”, de panelaços nas varandas gourmet, enfim: aquele momento de ruidosa ruptura com a ordem institucional, em que se abriu a caixa de Pandora e todos os males se espalharam pelo Brasil, contaminando em primeiro lugar os que estavam mais perto dela, aqueles justamente que a abriram.

Talvez eu esteja errado. Talvez minha previsão não se concretize. Talvez Bolsonaro vá para o segundo turno e perca para Haddad. Ou talvez Bolsonaro vá para o segundo turno e, com as forças antipetistas reunidas em torno de si, vença Haddad.

Mas, passando em revista minhas premonições de 2016, durante a fase do impeachment, vejo que tive alguma clarividência em muito do que percebi que ocorreria, e de fato ocorreu:

• Achava que Temer não era confiável e que não devia ser apoiado pelos tucanos. Realmente, não era e não devia.

• Acreditava que o PSDB perderia credibilidade e espaço político se ingressasse no governo Temer, e de fato perdeu.

• Acreditava que Temer faria um péssimo governo, o que só aumentaria as chances de o PT se recompor e voltar com força em 2018. Temer fez um governo sofrível e o PT aí está, com vaga no segundo turno.

• Acreditava que a ruptura com a ordem institucional, representada pelo impeachment (ainda que amparada em filigranas jurídicas), abriria caminho para outras rupturas de toda a ordem, e as decisões posteriores do Tribunal Superior Eleitoral sobre os crimes eleitorais de Temer (em ação movida pelo PSDB), o indulto do Supremo Tribunal Federal a Aécio Neves, que continua senador apesar de flagrado em constrangedor pedido de propina, a compra de votos dos congressistas por Temer, para negar ao Supremo autorização para processá-lo, aí estão para provar que, de alguma maneira, eu tive uma antevisão da desordem toda que sobreviria.

Poderia dizer que também previ o surgimento de um candidato messiânico, um suposto outsider no estilo de Bolsonaro, com um discurso forte contra “tudo o que está aí”, mas isso era tão óbvio que não precisaria ser especialista nem vidente para antever.

Essa é a história resumida, segundo minha versão que é apenas uma entre muitas outras, sobre como o PSDB de Fernando Henrique, José Serra, Geraldo Alckmin, Aloysio Nunes e Aécio Neves abriu mão de uma vitória quase certa em 2018 para amargar uma nova e humilhante derrota, já no primeiro turno das eleições presidenciais.

Em poucas palavras, o antipetismo exacerbado e o impeachment, somados à desastrosa participação no governo Temer e ao escorregão de Aécio Neves – que, sem trocadilho, encerrou sua carreira e transformou suas ambições políticas em pó –, criaram o caldo de cultura ideal para o crescimento de Bolsonaro e o fortalecimento do PT.

Se você é antipetista ou teme um governo de Bolsonaro, resta-lhe um consolo. Eu quase sempre erro previsões. Pode ser que algum outro ganhe esta eleição. Entre o momento em que escrevo e o fechamento das urnas, muita coisa ainda pode acontecer. Até um Alckmin, que corre na pista como um ganso gordo batendo as asinhas curtas, decolar finalmente nas asas do antipetismo e do antiesquerdismo e chegar ao segundo turno para vencer Bolsonaro ou Haddad.

Mas saímos do campo das possibilidades e entramos no da fisica quântica, ou coisa parecida.


(Na foto, o presidente Temer recebe Fernando Henrique Cardoso e Aécio Neves, entre outras lideranças do PSDB, para jantar em 25 de novembro de 2016. Foto: Beto Barata/Presidência da República/Fotos Públicas)


José Carlos Fineis é jornalista, produtor de vídeo, sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Editorial, Jornalismo e Edição Ltda., cofundador e coeditor da página Sorocaba Plural – Jornalismo Cidadão. As opiniões aqui expressas são de responsabilidade única do autor, e não refletem o pensamento de Sorocaba Plural ou da Loja de Ideias.  



24 de set. de 2018

A Via Láctea, o bêbado e o museu incendiado


Quando as pessoas se acomodam com a ideia de que a tragédia dos excluídos é culpa exclusiva deles, os excluídos, e não de um sistema que os pisoteia antes mesmo que possam erguer a cabeça para o mundo, não são só os museus, é o senso de dignidade que vira cinzas

Por José Carlos Fineis

Muito já se escreveu e falou sobre o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no começo de setembro. Mais de 20 milhões de objetos – alguns deles, únicos e de valor inestimável não só para o Brasil, mas para a Humanidade – foram perdidos para sempre. A negligência governamental, reflexo do desprezo da sociedade pela Cultura em sua concepção mais ampla, mais uma vez ficou patente. Faço estas declarações para não ser mal interpretado a partir do segundo parágrafo. Sou e sempre fui um defensor das artes e da Cultura. Acredito que os investimentos governamentais nessa área são ridiculamente pequenos e mal direcionados. Atribuo a esse desprezo pela Cultura e pela História grande parte das tragédias sociais, políticas e econômicas do Brasil de hoje.

Feitas essas considerações, fico à vontade para expor meu incômodo com um fato que passa despercebido, talvez por egoísmo, talvez por conformismo – com toda a certeza, por insensibilidade da maior parte de nós, brasileiros. Chora-se, lamenta-se pela perda de objetos inanimados. Fósseis, múmias, tronos. Nada a estranhar quanto a isto. Mas o que me causa estranheza não é a indignação com a perda do museu. É o silêncio da sociedade, dos intelectuais, dos políticos, dos religiosos e da imprensa com esta outra tragédia que se desenrola a céu aberto e à luz do dia, nas ruas e praças de nossas cidades: a deterioração de milhões de “peças” de nosso acervo humano. A desgraça de uma multidão de seres vivos, da espécie Homo sapiens, que definham diante de nossos olhos impassíveis.

Moro numa rua central, repleta de botecos. Nunca vi tantos seres humanos, quase todos jovens, jogados nas ruas, entregues ao álcool ou às drogas. Gente que grita com demônios imaginários, gente que dorme na calçada movimentada durante o dia, às vezes com um corote de cachaça ao lado, quase como se estivesse morta. Retalhos de vidas pelos quais os transeuntes passam indiferentes, como se ali não estivesse uma pessoa, como se aquele não fosse um irmão em humanidade, como o ser desfalecido, exposto ao sol ou ao frio da noite, não fosse mais do que uma subespécie animal inferior à dos cachorros – sim, porque dos cães de rua muitos ainda têm pena, e lhes dão comida, quando não os levam para casa.

Fico pensando: a que ponto chegamos, mesmo os mais sensatos de nós, para nos dessensibilizarmos quase que completamente diante da tragédia de nossos semelhantes, enquanto lamentamos a perda do trono do rei de Daomé – nós, que nem sabíamos que esse trono existia, ou que existiu um rei de um lugar chamado Daomé. Penso: por acaso desistimos de nós mesmos? Chegamos à conclusão de que certas pessoas não têm solução e de que é melhor deixá-las à própria sorte? Por que defendemos que investigações rigorosas sejam feitas para identificar as causas do incêndio do museu, mas não empregamos nosso tempo, nossa inteligência, nossos recursos para descobrir um jeito de devolver um ser humano à vida?

Meus olhos estão cansados de ver imagens tristes, como a da foto que fiz dias atrás na rua da minha casa, e que ilustra este artigo. Uma pessoa embrulhada em trapos e sacos plásticos, com a cabeça coberta pela camiseta, dormia na calçada com metade do corpo na chuva, numa noite em que a previsão de temperatura mínima era de 13 graus. Pensando no Museu Nacional e no homem da calçada, veio-me à memória uma frase lindíssima – talvez uma das mais pungentes que alguém já pronunciou –, e ainda mais surpreendente porque saiu dos lábios de um jornalista e dramaturgo conhecido por frases machistas e reacionárias: “Qualquer indivíduo é mais importante que toda a Via Láctea.”

Confesso que não sei o que levou Nélson Rodrigues a essa conclusão iluminada e em que contexto ele disse isso, mas considero que a frase se aproxima à grandiosidade de um versículo bíblico, como aquele segundo o qual todos somos deuses, porque “filhos do Altíssimo”, ou o outro que diz: “Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” O axioma de Nélson Rodrigues caberia, com perdão da blasfêmia, no Sermão da Montanha, cujo sentido, por sinal, é muito análogo a sua lógica, ao informar a nós, seres comuns, o quanto somos importantes. Deus – ensinou Jesus naquela ocasião – ama a todos assim como um pai ama seu filho. E, se às aves alimenta e aos lírios cobre de beleza, o que não fará por nós, seus filhos amados?

À parte as considerações bíblicas, a frase de Nélson Rodrigues pode ser tomada, também, como uma proposição científica. “Qualquer indivíduo é mais importante que toda a Via Láctea” nos adverte para o fato de que nossa galáxia, com seus bilhões de estrelas, suas nebulosas, planetas e buracos negros, não se compara em complexidade a um organismo vivo e pensante – por tudo o que conhecemos, o ápice da evolução, tenha ela origem divina ou natural. Um ser humano é algo tão maravilhoso que simplesmente não existe a possibilidade de compará-lo à matéria, seja ela uma estrela ou uma montanha. Mesmo com outras formas de vida, qualquer analogia se torna inviável, já que somos dotados de cérebros e consciência, sentimentos, imaginação e capacidade de amar.

Em que momento deixamos de enxergar a maravilha que é um ser humano e passamos a aceitar a hipótese de que membros de nossa espécie possam simplesmente perecer ao relento, sem que gastemos alguns minutos do nosso tempo para tentar tirá-los de seu torpor e perguntar: “Você está se sentindo bem?”, “Posso ajudá-lo de alguma maneira?”, “Você quer comer alguma coisa?” Se o trono do rei de Daomé fosse encontrado numa caçamba de entulho, descartado por engano por um funcionário relapso de museu, todos ficariam indignados. A imprensa clamaria por justiça em longas reportagens de TV e pomposos editoriais. Mas nosso amigo de dentes careados, bêbado e maltrapilho, ainda que seja comprovadamente mais importante do que toda a Via Láctea, pode morrer desamparado no frio da calçada, e seu desaparecimento sequer será percebido.

A esta altura, o leitor deve estar imaginando que condeno o dinheiro gasto com a Cultura e que tenho algo contra museus. Mas é exatamente o contrário. Acredito que as pessoas estão jogadas nas ruas porque não lhes foi dada uma oportunidade de se apaixonarem por algo que valesse a pena, quando crianças. Se houvesse investimento governamental em Cultura e Esportes – investimento de verdade, capaz de tornar esses bens acessíveis a todos –, haveria um número infinitamente menor de bêbados, drogados e loucos pelas ruas. Porque a criança, quando se apaixona por uma forma de arte ou de esporte, desenvolve anticorpos naturais contra o apelo da fuga, da curtição, do status ou do prazer fortuito proporcionado pelas drogas.

Aqui os extremos se encontram e se explicam. Perdemos o Museu Nacional porque não sabemos cuidar das pessoas. Deixamos que milhões de objetos raríssimos queimassem porque não conseguimos impedir que seres humanos se consumam desde a infância, sem que as partes do triângulo família-escola-governo se responsabilizem e façam algo de bom por eles. Pensando bem, é surpreendente que o Brasil ainda tenha museus, diante de nossa incompetência para cuidar da infância. Há décadas, governos eleitos com a promessa de melhorar a educação sucateiam a escola, e ninguém faz nada. Quando as pessoas se acomodam com a ideia de que a tragédia dos excluídos é culpa exclusiva deles, os excluídos, e não de um sistema que os pisoteia antes mesmo que possam erguer a cabeça para o mundo, não são só os museus, é o senso de dignidade que vira cinzas.

O incêndio do Museu Nacional deve, sim, cobrir-nos de vergonha. Mas não podemos permitir que a perda diária, sistemática e gradual de um acervo humano valioso nos seja menos vergonhosa, ou receba menos atenção. É hora de as pessoas inteligentes e comprometidas começarem a discutir políticas públicas que assegurem a toda criança a possibilidade de, ao menos, ter acesso a opções capazes de fazê-la enxergar um horizonte mais amplo, para além do submundo da rua, do cigarro, da maconha, das bebidas alcoólicas, do crack – enfim, desse pequeno universo que leva o indivíduo a fazer escolhas erradas, e a dormir na calçada e a morrer em vida, enquanto um museu pega fogo e a Via Láctea cintila com seus bilhões de sóis.


José Carlos Fineis é jornalista, produtor de vídeo, sócio da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda. e cofundador da página Sorocaba Plural - Jornalismo Cidadão no Facebook. Foto: José Carlos Fineis


8 de set. de 2018

Carta a um irmão machucado



Por José Carlos Fineis

Por acaso você perguntou
se o sangue que recebeu
era de um petista ou tucano?
Se o médico que o socorreu
era de esquerda ou de direita?
Se a enfermeira era lésbica?
Se o enfermeiro era gay?
Se os que consertaram você
eram pacifistas ou belicosos?
Se os que salvaram sua vida
eram comunas ou capitalistas?

Aprenda, meu irmão, uma coisa
que aprendi antes de você:
neste planeta minúsculo e belo
somos -- todos -- interdependentes
Respiramos o mesmo ar
pisamos no mesmo chão
aspiramos à mesma liberdade
Cada qual à sua maneira
sonhamos com dias melhores
Damos sangue para salvar vidas
e suor para o país funcionar 
Com o braço direito e o esquerdo
giramos as engrenagens do mundo

Porque nos permitiram viver
quando estávamos por um triz
o mínimo a fazer é nos amar
acima dos dogmas e das diferenças
E entender que sem os outros
por mais opostos que sejam
nossas vidas não são mais
do que uma flor em um copo sem água
Nós que fomos salvos por tantos
de quem sequer sabemos os nomes
temos o dever de nos curvar
a cada um, e louvar pela eternidade
a humanidade que existe no outro

Acima de ideologias e rancores
e diferentes formas de ver e pensar o mundo
cultivar o amor
como algo verdadeiramente sagrado
Essa é a grande lição
a ser aprendida.
-- Aprenda-a, como eu aprendi,
meu irmão machucado

(setembro de 2018)


27 de jul. de 2018

Fake news: o problema é mais embaixo


Quase todos os veículos se dizem imparciais – é como que uma formalidade, por uma questão de imagem pública –, mas os que praticam verdadeiramente a imparcialidade são raros. Agem mais ou menos como o Millôr quando se definiu, ironicamente, como um homem democrático, que respeitava as opiniões de todos, desde que concordassem com ele.

Por José Carlos Fineis

Fake news é mesmo um problemão. Mas a maior fake news de todas é aquela em que um veículo afirma ser democrático e pluralista e, no dia a dia, pratica exatamente o contrário: exclui segmentos, abraça ideologias de classe, direciona a pauta para não dar espaço a quem é de outra corrente, coloca interesses de grupos e pessoas acima dos interesses coletivos, criminaliza movimentos legítimos, põe em evidência apenas aqueles que representam sua forma de ver o mundo, acoberta as falhas dos amigos e prega "o rigor da lei" para os que pensam diferente – tudo isso, sob uma falsa aura de independência e imparcialidade.

Não estou aqui dando indiretas para este ou aquele veículo, mesmo porque os veículos mudam com o tempo: em algumas fases fazem bom jornalismo; em outras, fazem bobagem. Então, não há como avaliá-los sem considerar, pelo menos, sua importância pretérita e, confiando que os comportamentos bizarros não durem para sempre, sua capacidade potencial de retomarem o caminho da honestidade jornalística e voltarem a ser úteis um dia. "Veja" e "Istoé", por exemplo, já foram grandes revistas. Hoje nem sei como definir o jornalismo que praticam. Jornalismo de nicho, talvez. Mas, se sobreviverem às opções erradas que seus dirigentes fizeram, podem ainda voltar a ter alguma credibilidade e prestar bons serviços aos leitores.

(Um parêntese importante. Essa constatação vale também para a TV, que deve ser a única ou principal fonte de informação de 90% dos brasileiros. Por acaso, centrei o foco, neste artigo, na imprensa escrita. Porém, o mesmo processo ocorre em muitos telejornais. O poder que o Jornal Nacional tem sobre a sociedade brasileira é descomunal. E todos sabem, ou já deveriam ter percebido, que ali a pauta é bem dirigida. Não existe uma linha que não corresponda à agenda da Rede Globo, a qual, por sua vez, dá até medo de pensar em quais agendas está atrelada.)

O fake – não as fake news, mas o fake journalism dos órgãos ditos sérios, ou seja, o próprio processo de seleção, abordagem, produção e apresentação das notícias, mais intestinal e perigoso do que as fake news – é um mal que assola a imprensa, à direita e à esquerda. Quase todos os veículos se dizem imparciais – é como que uma formalidade, por uma questão de imagem pública –, mas os que praticam verdadeiramente a imparcialidade são raros. Agem mais ou menos como o Millôr quando se definiu, ironicamente, como um homem democrático, que respeitava as opiniões de todos, desde que concordassem com ele.

De toda forma, é preciso acreditar no poder dos leitores de regenerar o jornalismo de fora para dentro, diante da frouxidão dos que, por opção, se recusam a fazê-lo de dentro para fora. E isso se faz prestigiando o que existe de bom e honesto no meio, não aceitando gato por lebre, mostrando que o verdadeiro patrão, em qualquer veículo, não é nem o dono, nem o gerente, nem o editor-chefe. É o leitor. Sem leitor, literalmente, não tem negócio. E a mentira repetida mil vezes não se torna verdade, como querem crer os discípulos de Goebbels. Sem leitores, ela ecoa no vazio.

(Ilustração: Pinóquio por Enrico Mazzanti, Florença, 1883)

José Carlos Fineis é jornalista, editor de livros e produtor de vídeos, e sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda - www.lojadeideias.com.br

15 de jul. de 2018

E nós, será que somos os cidadãos que o Brasil espera para o futuro?

Reprodução
Muitos vídeos deixariam de ser gravados se, antes de ceder impulsivamente ao desejo de colocar a cara na telinha, cada um dos participantes fizesse esse simples exercício de autoanálise, no silêncio de seu quarto, a sós com sua consciência e seus botões

Por José Carlos Fineis

É sempre complicado criticar qualquer coisa relacionada à Rede Globo, pois isso se tornou lugar-comum – quase um vício para muitos brasileiros que, apesar disso, por motivos que a razão desconhece, continuam vendo a Globo e mantendo com a emissora uma relação de amor e ódio. Mas, se é complicado, eis aí um bom motivo para mergulhar de cabeça no tema, até porque o objetivo deste artigo não é propriamente criticar a Globo, e sim comentar o projeto “O Brasil que eu quero” em seu sentido mais amplo – incluindo-se aí, evidentemente, o sentido político que permeia quase todas as coisas.

Quando se fala em TV aberta, por vezes é difícil dissociar o serviço noticioso do marketing institucional e da "linha de shows" – e estes, por sua vez, das posições políticas, que podem ser ditadas por relações de amizade, simpatias ideológicas ou interesses comerciais e econômicos. Em alguns casos, esses elementos se fundem de tal forma que se torna impossível classificar as produções conforme sua utilidade ou objetivo.

No caso do projeto “O Brasil que eu quero”, a ideia tanto pode ter sido concebida pelo departamento de Jornalismo quanto pelo de Marketing. No entanto, qualquer que seja a origem, está claro que a iniciativa extrapola o terreno da comunicação, para assumir um contorno bem mais ambicioso. É indisfarçável o desejo de enfatizar o “poder” de uma organização que se imagina capaz de mobilizar multidões e pautar os rumos da vida nacional.

Seja qual for a intenção, entretanto, ela se mostra equivocada por alguns motivos óbvios e que poderiam ter sido previstos logo na primeira reunião de planejamento. O mais evidente, mas não o principal, é que projetos massivos como esse, com inserções em todos os telejornais e por um longo período de tempo, exaurem rapidamente o que poderia haver de novidade na fórmula e se tornam, em poucos dias, monótonos e cansativos.

A menos que o objetivo seja vencer pelo cansaço (estratégia que não funciona quando o receptor tem um controle-remoto na mão e aprendeu a aproveitar esses vazios de programação para ir ao banheiro), o fato é que as opiniões sobre o país, desde há muito marteladas sem grandes variações nas redes sociais, constituem um acervo bastante limitado e que, previsivelmente, levaria – como de fato levou – a um círculo asfixiante de opiniões recicladas.

Há muito tempo não se via, na TV brasileira, uma aposta tão alta – e isso dá o que pensar. No canal do projeto na internet, onde estão publicados todos os vídeos levados ao ar desde o primeiro dia, existiam até o dia 12 de julho nada menos que 275 páginas com 20 inserções cada, sendo que cada inserção apresenta em média entre cinco e sete vídeos de 15 segundos. Numa conta por alto, são bem mais de 30 mil vídeos, cuja soma ultrapassa as 120 horas de programação – e note-se que a emissora promete estender a cantilena, iniciada em março, até as vésperas das eleições, em setembro.

À já citada saturação gerada pela limitação do repertório, soma-se o fato de que, evidentemente, nem tudo o que os telespectadores submetem à emissora pode ser veiculado – e aqui ingressamos num campo mais preocupante, o da possível manipulação de conteúdo. Quando se convoca a população a dizer o que pensa, é previsível que surjam conteúdos inconvenientes e impublicáveis, como, por exemplo, críticas à própria Globo ou à excessiva liberalidade como as concessões de TV são utilizadas, ou ainda falas simpáticas a correntes político-ideológicas que não agradam à cúpula da emissora, ou contrárias aos interesses de seus proprietários ou patrocinadores.

Esse tipo de conteúdo não se vê nas inserções, levando a crer que ou existe de fato um filtro interno, ou os próprios espectadores se impuseram uma autocensura, deixando de enviar conteúdos que supõem não terem chance de ser veiculados. Para me certificar de que essa minha percepção, formulada como espectador eventual dos telejornais da Globo, não era injusta ou infundada, consultei aleatoriamente uma amostragem de 60 depoimentos no site da emissora. E confirmei que a quase totalidade dos vídeos contém clamores genéricos por “educação de qualidade”, “apoio aos produtores rurais”, “mais oportunidades de empregos aos jovens”, "menos corrupção" – enfim, uma ladainha circular de anseios antigos e massificados. As exceções ficam por conta de pessoas que aproveitam o espaço na TV para protestar contra obras abandonadas, problemas ambientais e carências de seus municípios – aspectos pontuais que, de toda forma, ainda conferem alguma utilidade concreta ao projeto.

Algumas lacunas são clamorosas. Não se veem, por exemplo, críticas ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público, órgãos que também têm muitas mazelas, como o auxílio-moradia pago a quem não precisa, para não falar na já proverbial morosidade. Não encontrei uma palavra sequer sobre juízes que desprezam a liturgia do cargo, opinando publicamente sobre processos que vão julgar – uma aberração jurídico-institucional que escandaliza a muitos no Brasil de hoje. Nada, nem por meio de indiretas, sobre os erros, por vezes intencionais e grosseiros, da chamada grande imprensa. Nem uma menção à violência policial, ao corte dos investimentos em saúde e educação, à supressão de direitos trabalhistas, à troca de favores entre governo federal e parlamentares para evitar que um presidente da República fosse alvo de investigação.

A essas ausências soma-se um outro problema grave, também relacionado à concepção e ao direcionamento, que começa pela própria formulação da pergunta: “Que Brasil você quer para o futuro?” Existem, nessa proposição, duas falhas conceituais gritantes, que induzem a uma postura e balizam, por antecipação, os tipos de temas e abordagens desejados. A primeira falha é colocar, sintaticamente, o cidadão de um lado e o Brasil de outro, como se este não fosse parte integrante daquele. A segunda é investir essa "pessoa do povo" na condição de quem deseja ou precisa ser servido, e não de alguém que é parte ativa da História e, como tal, detém uma parcela pessoal e intransferível de responsabilidade.

Menos demagógico e mais produtivo teria sido convidar os brasileiros a dizerem como imaginam que podem mudar a realidade que os cerca, a partir de seus campos de atuação. A campanha, como concebida, coloca os participantes na posição de críticos dos outros – os políticos, em particular. Ignora-se o fato de que o Brasil que aí está – assim como o Brasil “do futuro” – nada mais é do que o resultado da soma de todas as atitudes individuais, certas ou erradas. E que os políticos, esses seres que "não nos representam", não vieram de Marte em um disco-voador. Eles só estão na vida pública porque, pouco fiscalizados pela imprensa e pelos eleitores, receberam e continuam recebendo votos de pessoas como eu e como você.

O resultado desse projeto de formulação equivocada, para dizer o mínimo, é uma coleção de desejos, quase exigências, que inspiram em seu conjunto uma atitude dissimulada e arrogante. Penso que, antes de ligar o celular para dizer qual o Brasil que se deseja para o futuro, a melhor atitude seria procurar um espelho e perguntar a si mesmo: “Será que tenho sido o tipo de cidadão de que o Brasil precisa para ser um grande país?” Muitos vídeos deixariam de ser gravados se, antes de ceder impulsivamente ao desejo de colocar a cara na telinha, cada um dos participantes fizesse um exercício de autoanálise, no silêncio de seu quarto, a sós com sua consciência e seus botões.

Existe uma máxima muito conhecida, pronunciada por John F. Kennedy ao tomar posse na Presidência dos Estados Unidos, em janeiro de 1961, que exemplifica bem esse raciocínio. Ele disse: “Não pergunte o que o seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país.” É um ponto de vista que sintetiza a importância dos valores e atitudes individuais, enquanto elementos de construção de uma nação onde a igualdade e as oportunidades tenham alguma chance de existir; um país onde os direitos sejam respeitados e as pessoas, valorizadas como imaginam que merecem.

É no sentido oposto que caminha a campanha da Rede Globo, como que a incutir em cada brasileiro a ideia de que o cidadão é um objeto passivo a ser atendido, uma espécie de reizinho sem cetro nem coroa que só tem sua voz – veiculada gentilmente pela emissora, desde que não ultrapasse os 15 segundos – para dizer aos “políticos” o que eles devem fazer e como o Brasil deve ser. A pretexto de se oferecer espaço a todos, na verdade o que se faz é confinar a reflexão sobre os problemas nacionais à periferia dos temas realmente importantes e que envolvem assuntos espinhosos, alguns dos quais acabam resvalando no próprio comportamento dos órgãos de comunicação.

Impossível imaginar para que servirá esse acervo descomunal de desejos capturados em vídeo, além de ocupar muitos gigabytes nos servidores da emissora. Primeiro, porque os políticos já sabem de tudo isso – certamente não há, nessas muitas horas de vídeo, algo que seja novo para eles. Segundo, porque nós, brasileiros, também já sabemos. E, finalmente, porque a simples repetição de clichês genéricos e superficiais, desprovida de qualquer forma de engajamento, organização ou mesmo um esforço consciente no sentido de votar em alguém que mereça, não tem o poder de mudar coisa alguma.

Talvez o grande beneficiário da iniciativa seja essa coisa que os estudiosos da mente chamam de ego. O ego da Rede Globo, por promover durante vários meses uma pseudomobilização de milhares de pessoas, levadas a crer que suas opiniões são valorizadas pela emissora, desde que, logicamente, não se contraponham aos cânones da mesma. E, na outra ponta, o ego dos participantes (ou seriam coadjuvantes?), satisfeitos por aparecerem na TV uma vez na vida, ainda que apenas para somar suas reivindicações e lições de moral a um vozerio confuso – por sinal, muito bem representado pelo áudio caótico da vinheta do projeto. E felizes, com seus poucos segundos de fama, por imaginar que alguém, além deles próprios, se interessa por aquilo que têm a dizer.


José Carlos Fineis é jornalista, editor, produtor de vídeo e sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda.




28 de jun. de 2018

O que podemos (des)aprender com a história de Davi e Golias



Todo dia, as pessoas saem de suas camas sem saber como a jornada terminará. Nem Davi levanta-se vitorioso, nem Golias derrotado. E nem lhes é dada a opção de escolher entre ser este ou aquele. Cada um só tem a opção de ser o que é e trabalhar com aquilo que tem. Isso vale para tudo na vida e é claro que vale também para o Jornalismo.


Por José Carlos Fineis

O confronto entre Davi e Golias é narrado com detalhes no primeiro livro de Samuel, um dos chamados livros históricos do Antigo Testamento, que abrange, conforme estudiosos, fatos ocorridos no período de 1.100 a 1.000 antes de Cristo. Há mais de três mil anos, portanto, a história do pastor hebreu que abateu o gigante filisteu, uma das mais conhecidas da Bíblia, capturou a imaginação de pessoas simples, escritores e filósofos, e tem sido invocada como comprovação do poder de Deus – seu sentido original bíblico – ou, de forma mais abrangente, como exemplo de que tamanho nem sempre é documento: a liberdade de movimentos, a agilidade e a ousadia, combinadas, podem derrubar o maior e mais forte.

Tomo a história emprestada para propor um outro tipo de reflexão, que talvez não caiba num blog sobre Comunicação – ou talvez caiba, se estendermos a analogia bíblica para os muitos dilemas enfrentados atualmente pelo jornalismo, não só em termos de plataformas e de financiamento, mas, principalmente, em termos de compreensão da função social da informação e dos princípios elementares que devem reger essa atividade*.

De toda forma, o enfoque não é esse. O que quero propor é que o leitor se imagine como alguém que pudesse escolher entre ser Davi ou ser Golias, e responda quem preferiria ser. Não tenho dúvida de que, se essa pergunta for feita para um milhão de pessoas – desde que, obviamente, conheçam a história bíblica e seu desfecho –, todas, sem exceção, responderão que preferem ser Davi. Afinal, foi ele o vencedor.

Mas vamos tentar uma reflexão mais ousada. Suponha que Davi e Golias nunca se enfrentaram. Suponha que você está diante de dois guerreiros e que precisa apostar tudo o que tem na escolha de um vencedor. Suponha que o guerreiro de um dos exércitos seja um pastor de ovelhas, sem experiência em campos de batalha, munido apenas de uma atiradeira e cinco pedras lisas retiradas de um riacho, e que o combatente do outro exército seja descrito desta maneira: “Tinha dois metros e noventa centímetros de altura. Usava um capacete de bronze e vestia uma couraça de escamas de bronze que pesava sessenta quilos; nas pernas usava caneleiras de bronze e tinha um dardo de bronze pendurado nas costas. A haste de sua lança era parecida com uma lançadeira de tecelão, e sua ponta de ferro pesava sete quilos e duzentos gramas.”

Esqueça o contexto bíblico. Esqueça quem eles são. Em qual dos dois você apostaria? Certamente, não no mais fraco, inexperiente e desprotegido. Se retirarmos os nomes dos personagens e os analisarmos apenas por sua aparência, força física e armamentos, estou certo de que toda pessoa, sem exceção, afirmaria acreditar que o maior, mais forte e mais bem armado teria mais chances de vencer.

É nesse ponto que eu gostaria de chegar. Davi e Golias, na vida real, entraram no campo de batalha sem saber quem sairia vivo. Lembre-se: o Livro de Samuel ainda não havia sido escrito. Eles o estavam vivendo ali. Era a história sendo feita pelo entrelaçar de pensamentos, palavras, gestos e olhares, a céu aberto, em campo aberto, com cheiro de suor e de estrume de animais, entre sóis abrasadores e noites estreladas.

Talvez Davi tivesse uma confiança tão intensa, tão profunda em seu Deus que acreditasse, por todos os seus átomos e pensamentos, não haver a mínima possibilidade de ser derrotado. Mas Golias também tinha fé em seus deuses. Ele confiava de tal forma em sua força que durante 40 dias colocou-se à frente do exército filisteu e desafiou os hebreus a que designassem um homem para enfrentá-lo. Em sua suposta arrogância, oferecia-se, na verdade, para carregar nos ombros a responsabilidade da vitória e evitar uma carnificina entre seu exército e o exército inimigo, reduzindo-se toda a batalha a um confronto entre dois homens apenas: ele e quem se dispusesse a lutar com ele.

O relato de Samuel nos mostra um Davi extremamente seguro de sua capacidade. O jovem pastor, pelo menos no relato bíblico, não é um homem fraco, como acabou sendo representado em filmes e ilustrações. Apenas não é um guerreiro. Mas, segundo suas próprias palavras, está acostumado como pastor a lutar com leões e ursos, nos quais dá golpes até matá-los, para resgatar de suas bocas ovelhas subtraídas ao rebanho.

Ainda assim, ninguém acreditava que Davi teria alguma chance contra Golias. Talvez o jovem Davi estivesse apenas contando vantagem quando relatou essas façanhas ao rei Saul, para que este o deixasse lutar por Israel. Talvez, pensando mais longe, Saul apenas tivesse fingido acreditar na história de perseguir e enfrentar feras, e permitido a Davi enfrentar Golias simplesmente porque não tinha outra opção, já que durante 40 dias todos os homens de seu exército – ele, inclusive – haviam tido a chance de se apresentar no campo de batalha para bater-se com o gigante, mas preferiram recolher-se e dormir humilhados.

O que estou querendo dizer é que é muito fácil escolher entre ser Davi ou ser Golias, quando se conhece ou não se conhece o fim da história; fácil, porém enganoso, já que o conhecimento ou desconhecimento levam a opções diferentes. E nós, em nossas trajetórias de vida, não sabemos o fim da história. Logo, somos constantemente induzidos ao erro.

Com base na intuição, na lógica, na análise das probabilidades e em inúmeras outras informações e referências, concluímos que somos fracos ou fortes, poderosos ou impotentes. Mas isso não é a realidade – é apenas algo que nos foi incutido ou que nós mesmos apanhamos por aí, e de que nos convencemos. A história está sendo vivida neste exato momento, enquanto sorvemos o ar para dentro de nossos pulmões e enquanto nossos corações palpitam. Ela está sendo escrita primeiramente em nossos pensamentos, antes mesmo de podermos externá-la por palavras e ações e dar a ela uma existência palpável.

A única coisa certa é que existimos. O resto são crenças que adquirimos com base na observação, na comparação, nas intuições aparentemente lógicas que nossas mentes, moldadas para raciocinar de forma a assegurar a sobrevivência e evitar os perigos, desenvolveram ao longo de centenas de milhares de anos.

Todos os dias, pessoas aparentemente sem chances se apresentam no campo de batalha para enfrentar gigantes supostamente imbatíveis. Algumas vencem, outras não. Talvez a maior parte, como o exército de Saul, se recuse a lutar, por medo de ser trucidada. O inverso também ocorre. Na minha cidade, e creio que em grande parte das cidades ao redor do mundo, muitas foram as empresas familiares que dominaram um segmento de mercado durante uma ou duas gerações, e que, uma vez atingido o sucesso, acomodaram-se em suas posições de liderança até que fossem ultrapassadas por um ou mais concorrentes. Havia até um slogan, bastante utilizado por publicitários locais em décadas passadas: a gigante do ramo. Foram muitas as “gigantes do ramo” que faliram por uma combinação de desinteresse dos herdeiros, administrações medíocres e excesso de confiança.

A verdade é que não sabemos, de fato, quem é o grande ou o pequeno, quem é o Davi ou o Golias da vez. Seríamos mais felizes em nossos projetos de vida se deixássemos de ouvir esse vozerio interior em que se misturam nossos medos, os medos de nossos pais e de nossos antepassados, e apenas seguíssemos em frente, confiantes, alegres, criativos, preparados para sucumbir ou vencer com a consciência tranquila de quem, não podendo escolher para si um papel ideal em um livro de história, empenha-se e faz o seu melhor para que aquilo em que acredita se torne real.

O que os jovens empreendedores de sucesso e as grandes empresas falidas nos ensinam é que é preciso confiar menos nas aparências e mais na própria capacidade, mas não cegamente. Davi tinha uma fé inabalável em Deus, mas também confiava na força de seus braços e em sua pontaria, exercitada durante muitos anos em que precisou atacar com pedras as feras que assaltavam seu rebanho. O mesmo excesso de confiança que levou Davi à vitória, de maneira paradoxal, foi o que causou a morte de Golias, pois ele, embora tivesse um escudeiro que “seguia à sua frente”, aparentemente não carregava um escudo – ou teria se protegido com facilidade da pedra lançada por Davi.

Portanto, seja qual for o projeto que você tem em mente, faça um favor para si mesmo: apague, renegue, recuse toda ideia preconcebida a respeito de tamanho, poder e força, seja para mais ou para menos. Esses fatores são subjetivos e se manifestam muito mais pela capacidade do pensamento, da criatividade, da estratégia, do método e da dedicação do que por fatores externos como dinheiro, estrutura, fama ou marca. Todo dia, as pessoas saem de suas camas sem saber como a jornada terminará. Nem Davi levanta-se vitorioso, nem Golias derrotado. E nem lhes é dada a opção de escolher entre ser este ou aquele. Cada um só tem a opção de ser o que é e trabalhar com aquilo que tem. Diante de todas as pessoas – e não me refiro aqui apenas a pessoas livres e saudáveis – existe um oceano de possibilidades que lhes cabe explorar da melhor maneira possível. E isso não se faz sem controlar o medo, de forma confiante mas não arrogante, ousada mas não inconsequente, aplicada mas sem obsessão pelos resultados, pois muitas vezes são a impaciência e a pressa de ver os resultados que põem tudo a perder.

Este pensamento, esta forma de se posicionar diante da vida, aplica-se a tudo e a todos. Faça uma faxina mental e varra para fora de sua consciência todo conceito pré-fabricado deixado ali por sucessivas gerações, pelo famigerado “senso comum”, pelo suposto “bom senso”. Não se deixe enganar pelo que parece óbvio. Nada é óbvio na vida, a não ser as supostas obviedades em que acreditamos e que, por isso, condicionam nossos pensamentos, limitando nossa capacidade de imaginar, planejar e agir. Liberte-se da ideia de vitória ou derrota, do provável ou improvável, e apenas dedique-se a fazer o que pode fazer hoje, dando o melhor de si, com todas as suas forças e toda a carga possível de esperança.

Se o sucesso virá ou não, isso não é tão importante. E ninguém jamais saberá ao certo, pois esta é uma parte da história que não depende apenas de nossa vontade. Foi pela coragem em enfrentar um guerreiro temível que Davi se fez um grande homem. A pedrada mortal no inimigo tornou-o um vencedor, mas antes disso, por sua atitude, ele já era um vitorioso – e o ganhar ou o perder, você pode acreditar, não mudariam esse fato.

*No momento, penso muito nessa história e em seus muitos significados, graças à experiência com o recém-lançado projeto Sorocaba Plural - Jornalismo Cidadão, uma proposta inovadora de jornalismo feito pela e para a comunidade, na cidade de Sorocaba (SP).

José Carlos Fineis é jornalista, editor, videoprodutor e sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda.


13 de jun. de 2018

O jornalismo honesto e bem feito tem uma chance maior de sobreviver

A questão que deveria importar não é o futuro do jornalismo impresso,
mas sim o futuro do próprio jornalismo (foto Pixabay)

















Para os que respeitam o leitor e o jornalismo em sua essência, as perspectivas de subsistência por meio de assinaturas, crowdfunding ou publicidade vinculada a audiência são melhores do que para os que tentam enganar seu público com um arsenal de meias-verdades e manipulações

Por José Carlos Fineis

Qual o futuro do jornalismo impresso? A pergunta tem sido feita com frequência nos últimos anos e a resposta, para a maior parte dos leitores, é irrelevante, pois o que interessa é o conteúdo, e não a forma como esse conteúdo é entregue.

O futuro do jornalismo impresso preocupa, com toda razão, a indústria de papel e de insumos gráficos, os órgãos de comunicação com uma cultura empresarial baseada em plataformas impressas (e que enfrentam dificuldades para se firmarem no ambiente digital) e os leitores que não abrem mão, como declaram com um certo romantismo, de folhear o jornal à mesa do café da manhã, sentindo o “cheiro da tinta” e tendo a experiência tátil de virar as páginas.

Estes leitores são cada vez mais raros – é uma questão geracional. E isso colocou toda uma cadeia produtiva em colapso, já sentido por alguns, iminente para outros. O público jovem e não tão jovem, que se acostumou a consumir informações a toda hora, em toda a parte e em tempo real, já elegeu a plataforma pela qual quer ser informado, e ela (por enquanto, ao menos) responde pelo nome de smartphone.

O que virá depois disso é impossível imaginar, mas algo mais moderno e funcional já está em gestação nas grandes empresas e startups, e certamente não é nada que não seja um passo adiante em tecnologia digital.

De toda forma, o que deveria causar preocupação não é o futuro do jornalismo impresso, mas sim o futuro do jornalismo independente e de qualidade, seja no formato impresso, seja nas plataformas digitais. A grande questão que se coloca, na verdade, é: será o jornalismo bem feito, já raro nas assim chamadas mídias tradicionais, capaz de sobreviver no ambiente caótico da internet, onde parece ser mais fácil conseguir audiência (e, consequentemente, receita publicitária) com fake news e fofocas sobre celebridades do que com notícias bem apuradas e reportagens bem escritas?

Com o esfacelamento dos modelos tradicionais de negócios, quem vai pagar salário ao jornalista para ir a campo e gastar seu tempo – horas, dias, semanas – com pesquisas e entrevistas, para cavar aquela informação que não estava à vista de todos nem foi enviada num press-release, e que só uma apuração eficiente poderia revelar?

Hoje, enquanto as mídias tradicionais lutam para se manter e as mídias digitais ainda procuram fórmulas para se estabelecer, tudo parece desfavorável ao trabalho do jornalista e à existência de veículos independentes. As mídias impressas têm cada vez menos espaço para realizar aquele que, por autodefinição, seria seu grande trunfo no contexto eminentemente digital: trazer notícias melhor apuradas, ou exclusivas, e análises que ajudem o leitor não apenas a saber o que ocorre, mas como e por que ocorre.

O que se vê, na prática, são jornais e revistas cada vez mais “magros”, com poucos artigos e notícias cada vez menos detalhadas – com a desvantagem de que os temas, em geral, já foram em sua maior parte vistos antes na TV ou na internet no dia anterior. Com redações menores e cada vez menos experientes (já que experiência representa um custo maior), está difícil para esses veículos trazer notícias exclusivas, reportagens investigativas e textos primorosos, que funcionariam, evidentemente, como diferenciais.

E, mesmo entre os que ainda contam com recursos humanos e materiais para fazer um bom trabalho, encontram-se restrições à informação plural e independente, geradas por pressões internas ou externas de natureza econômica, política, ideológica e corporativa – ou, igualmente nocivo, por um certo populismo midiático, que escolhe publicar apenas aquilo que imagina que “seu” público “quer ler”, e não o que a sociedade precisa saber.

O jornalismo vive dois impasses distintos, que se imbricam em grande parte: o da sustentabilidade das plataformas, de um lado, e, de outro, o do grau de comprometimento com um jornalismo bem feito, responsável e plural

As mesmas dificuldades, com exceção da falta de espaço, são encontradas nos serviços noticiosos da web, que ainda não desenvolveram modelos de negócios capazes de manter algo semelhante à estrutura de uma redação tradicional, com um corpo de repórteres razoável, uma equipe de TI, suporte jurídico, designers e afins. Não que alcançar essas condições seja impossível, mas o cenário atual está longe de ser muito mais favorável do que aquele vivido pelas mídias tradicionais. 

O resultado disso pode ser observado sem dificuldade: poucos são, no ambiente digital, os que geram conteúdo. A grande maioria, como eu, está confortavelmente sentada em seus escritórios, escrevendo em seus blogs opiniões sobre as notícias veiculadas pelos poucos que ainda se aventuram a ir a campo e suar a camisa para levantar a informação.

É um cenário preocupante, pois a sociedade não precisa apenas ser informada – ela precisa ser bem informada. Sem dúvida, é desalentadora a situação de centenas de municípios brasileiros que não contam com um único jornal ou site noticioso. Mas será que qualquer jornal, qualquer site noticioso cumpriria a função de informar corretamente, evitando que a informação fosse contaminada (como, em muitos casos, acaba ocorrendo) por interesses político-partidários ou econômicos, por laços de parentesco ou compadrio empregatício, ou mesmo pela visão de mundo limitada de um dono de jornal ou de um diretor de redação?

O jornalismo vive, como se vê, dois impasses distintos, que se imbricam em grande parte: o da sustentabilidade das plataformas, de um lado, e, de outro, o do grau de comprometimento com um jornalismo bem feito, responsável e plural.

Dentre tantas dúvidas, uma certeza é cristalina – mas, nem por isso, foi devidamente assimilada por todos os que estão neste ramo: um órgão de comunicação, seja ele um blog ou uma revista impressa, precisa ser muito necessário, indispensável mesmo, para ter uma chance de sobreviver no cenário atual. Isso exige um compromisso inegociável com valores fundamentais do bom jornalismo, como independência, pluralidade, honestidade da apuração, qualidade dos textos e da edição – numa palavra, um compromisso com a excelência que diferencia o supérfluo do essencial.

É claro que sempre haverá muitas desculpas para encerrar as atividades de um serviço noticioso, seja ele impresso ou on-line. Nestes tempos bicudos, desânimo é o que não falta. Mas muitos caminham para o ocaso quando ainda poderiam fazer alguma coisa para se diferenciar de todo o resto. Faltam anunciantes e os assinantes são escassos, é verdade, mas o que condena verdadeiramente um serviço noticioso é a recusa taxativa de tratar a informação com honestidade e buscar a excelência, se não em tudo, pelo menos naquilo que é essencial ao jornalismo – a disposição de se esforçar por ser verdadeiro, independente e plural.

Especialmente neste momento, em que as fake news infestam as redes sociais, tudo o que o leitor precisa e deseja é que a notícia seja um espelho o mais ético possível da realidade. Sob este ponto de vista, para os que respeitam o leitor e o jornalismo em sua essência, as perspectivas de subsistência por meio de assinaturas, crowdfunding ou publicidade vinculada a audiência são melhores do que para os que tentam enganar seu público com um arsenal de meias-verdades e manipulações – até porque a mentira tem pernas curtas e a manipulação, com as mídias sociais solapando desde as fundações os antigos latifúndios da informação, é facilmente detectada.

Neste ponto, é preciso abrir um parêntese para lembrar que toda crítica genérica é injusta. Existem, felizmente, muitos profissionais e veículos que se comportam com responsabilidade e respeito diante da informação e que têm clara em mente a sua função social. Democraticamente, permitem que seus canais de comunicação reflitam a realidade dos fatos e da diversidade de pensamentos, resistindo bravamente à tentação de transformá-los em extensões de suas visões de mundo. Não são muitos, mas estão aí, na luta. Com o tempo, eles tendem a ser beneficiados com esse que é o principal capital no ramo das comunicações – a credibilidade. Serão os pontos de referência da web, aos quais as pessoas recorrerão sempre que ficarem em dúvida sobre algo que leram em outro lugar.

Os outros – bem, os outros tentarão resistir com marketing, sorteios e outros artifícios. Muitos sobreviverão abraçando o jornalismo de serviços ou de entretenimento. Mas, em linhas gerais, seja nas mídias tradicionais, seja nas digitais, a frase atribuída a Abraham Lincoln continua mais atual do que nunca: “Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo.”

Em qualquer ramo de atividade, ter um bom produto, confiável e que satisfaça às expectativas dos consumidores, é condição fundamental para permanecer no mercado. Por que seria diferente com a informação?

José Carlos Fineis é jornalista, produtor de vídeo e editor