10 de ago. de 2019

Carta aberta a um bobo parado no tempo


Lojas fechadas na rua Souza Pereira, centro de Sorocaba,
três anos depois da reimplantação da cartilha neoliberal por
Temer, PSDB e patrocinadores. Foto de José Carlos Fineis

Assim como Marty McFly, do filme "De volta para o futuro", ele está preso no passado -- no caso, os anos 90 do século 20. Bem nutrido, solteiro e sem filhos para alimentar, é contra aumento real do salário mínimo, defende regime de fome para os aposentados e, é claro, acredita na joia da coroa do neoliberalismo jurássico, as privatizações. Repassando-se as atividades lucrativas para a iniciativa privada e as que não são lucrativas (como a saúde dos pobres) para as mãos de Deus, acredita que será possível "arrumar a casa", atrair "investimentos" e gerar "riqueza" 



Por José Carlos Fineis

O garotão solteiro e bem nutrido defende o fim do aumento real para o salário mínimo com aquele discurso neoliberal dos anos 90 do século passado, de que é preciso privatizar os bens do povo brasileiro e "arrumar a casa" (é claro, cortando custos na base da pirâmide, pois o topo é intocável) para atrair mais investimentos, mais riqueza e mais empregos. Sei.

No tempo dos governos militares (que, justiça seja feita, tinham ministros da Fazenda civis, como Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen), o discurso era semelhante. Usavam uma metáfora: era preciso fazer o bolo crescer para reparti-lo depois. O que cresceu, como se sabe, como resultado de mais de 20 anos batendo nessa tecla, foram a dívida externa e a inflação.

Essas duas cartilhas, a militar setentista e a neoliberal noventista, estão ultrapassadas e só não são mais antigas que a cartilha Caminho Suave, em que os quarentões e cinquentões de hoje aprenderam a ler e escrever por meio de textos inesquecíveis como "barriga - ba", "zabumba - za". Mas esta, ao contrário das outras, ao menos cumpria a função para a qual fora concebida.

Ha muitas décadas, os países desenvolvidos perceberam que povo sem renda é economia parada. Criaram, ainda no século 19, o conceito de walfare state, de bem-estar social. Hoje, qualquer pessoa que saiba usar o Google pode constatar a relação direta existente entre o investimento social, o PIB e a renda per capita. Quanto mais se investe no povo, maior o Produto Interno Bruto, maior a riqueza, melhores as relações sociais e a segurança.

Existe uma lógica capitalista nisso. E a explicação é tão simples que até uma criança (mas, infelizmente, não uma parte de nossos políticos e elite econômica) é capaz de entender. Nenhuma montadora vai investir milhões para abrir uma fábrica de carros num país onde o povo não tem dinheiro pra comprar nem a maçaneta ou o pneu do carro, quanto mais um carro inteiro.

Por isso, e também porque investem em educação, países como Suécia, França, Dinamarca, Alemanha, Bélgica e Suíça são desenvolvidos. Porque desde há muito põem dinheiro nas mãos do trabalhador, do aposentado, do desempregado, e esse dinheiro faz girar a economia, com um impacto direto no consumo e, por consequência, nos serviços, nas indústrias, no agronegócio, no turismo.

Países ricos defendem seus produtores rurais, industriais e exportadores em negociações duras e por vezes leoninas, em que se valem de medidas protecionistas sem constrangimento. Priorizam seu mercado interno, suas empresas. Mas, o que é mais importante, cuidam para que as pessoas -- o capital humano -- não morram de fome nem deixem de consumir.

Estado mínimo? Estado ausente? É coisa para países subdesenvolvidos. Vendendo essa ideia para governantes venais, moralmente e intelectualmente indigentes de países como o Brasil, os Estados ricos abrem passagem para suas empresas explorarem nossas reservas minerais, nossa telefonia, nossa mão de obra barata, nosso mercado interno que ainda apresenta potencial teórico de crescimento.

Hoje, no mundo civilizado, discute-se com seriedade a criação ou ampliação dos programas de renda mínima. Por aqui, os neoliberais que ficaram congelados no tempo, devotados ao ideário dos anos 1990, ainda não perceberam, mas a maior preocupação dos países desenvolvidos é garantir que seus povos tenham alguma fonte de renda, num mundo em que os empregos estão sendo rapidamente eliminados pela tecnologia.

Essa preocupação é pautada por motivos humanitários sim, mas também pela percepção de que não existe produção de riqueza sem consumo.

São as geladeiras, os passeios, os sapatos novos, os celulares e os alimentos comprados pela população que fazem girar as engrenagens da agropecuária, da indústria, do comércio e dos serviços, num círculo virtuoso em que todos -- inclusive o governo, na forma de impostos -- saem ganhando.

Ao aprofundar a miséria, reduzindo benefícios sociais, congelando o salário mínimo e flexibilizando as relações trabalhistas, a oligarquia político-econômico-financeira do Brasil atua de forma predatória contra si mesma. Porque, se o dinheiro não vai para as mãos das classes C, D e E, comércio, serviços, indústria e agronegócios perdem uma fatia gigantesca de mercado. Cortar custos nas costas do povo é suicídio coletivo. E a prova disso é o número crescente de portas fechadas no comércio, por exemplo.

Garoto bem nutrido do Facebook, procure ler mais, se informar melhor. Não se comporte como um Marty McFly preso no passado. Tornar os pobres mais pobres, reduzir a pensão das viúvas, manter o salário mínimo em R$ 1 mil não é bom para ninguém, nem para os ricos. Defender direitos sociais, renda minima e distribuição de riqueza não é coisa de comunista. É a agenda do capitalismo nos países mais desenvolvidos do mundo, hoje mais do que nunca.

E até a China comunista, talvez o mais capitalista dos países, já percebeu isso. Há anos, o salário médio dos trabalhadores chineses supera os dos países da América Latina, com exceção do Chile. A esperta China quer ser mais rica e poderosa. E percebeu que o caminho para conquistar mercados não é a precarização do trabalho, e sim o investimento em produtividade.

Abra a cabeça, rapaz. Deixe de ser egoísta. Pense grande. Seja grande. Tire os olhos dessa velha cartilha que nem os que a escreveram acreditam mais nela, se é que um dia acreditaram,

Defender a pobreza como caminho para a riqueza é uma burrice monumental.


Reclamações, elogios, críticas e xingamentos para zefineis@hotmail.com



30 de abr. de 2019

Adeus, queridos!





Por José Carlos Fineis

A lata de lixo da História, para onde vão as biografias infames, nunca esteve tão cheia de gente viva e que ainda fala e respira (embora tenha saído de circulação por motivos estratégicos).

Um dos seus habitantes é o ex-eterno-futuro presidente do Brasil, José Serra.

Político ambicioso que tinha tudo para catalisar os votos antipetistas em 2018, Serra embarcou numa aventura política, jurídica e midiática digna dos piratas do Caribe e preferiu entrar no Palácio do Planalto pela porta dos fundos, em 2016. Só faltou a faca entre os dentes.

Quando notou, tarde demais, que sua já precária popularidade despencava com a do presidente e traidor Michel Temer, alegou dores nas costas, pediu para ir ao WC e saiu de cena sem ser notado.

Serra ainda precisa explicar os milhões que o ex-presidente da Dersa (companhia rodoviária paulista) e operador do PSDB em seu Estado, Paulo Preto, amealhou e depositou em um banco suíço.

Será dinheiro de propinas recebidas por Serra, Alckmin, Aloysio Nunes e companhia bela? Ou será como o dinheiro que Paulo Maluf mantinha na Suíça e jurava não ser dele?

A festa do impeachment: ânsia por
poder levou à derrocada do PSDB
Esses senhores podem alegar, como efetivamente alegam, que nada têm a ver com isso e que, se algo de errado ocorreu, foi sem o conhecimento dos "eficientes" governos tucanos de São Paulo.

Se for este o caso, e se a eles não cabe a aplicação da teoria jurídica do domínio do fato, usada para julgar e condenar petistas, estes senhores podem, sem risco de incorrer em difamação, ser chamados de omissos, negligentes e incompetentes. Além de andarem em más companhias, como a de Paulo Preto e deles próprios.

Não fosse a omissão, a negligência e a incompetência, como poderiam deixar que roubos milionários ocorressem em seus governos, por mais de vinte anos, desde os tempos do ex-governador Mário Covas, sem que tivessem conhecimento?

Eu não daria duas tartarugas para esses senhores cuidarem. O leitor daria?

Mas essa, a da incompetência, é apenas a mais complacente (e menos plausível) das hipóteses. Talvez um dia algum juiz sem rabo preso -- ou seja, um juiz que não seja como Sérgio Moro -- determine a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico destes senhores, e mande a PF revirar seus colchões, como fizeram no apartamento do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em busca de provas para incriminá-lo.

Serra, de toda forma, está acabado para a política, assim como o ex-queridinho de nove entre dez  habitantes da Casa Grande, Aécio Neves, que conseguiu se livrar dos "juizecos" de primeira instância com um carguinho de deputado, mantendo assim o privilégio de ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal -- o que equivale a dizer, por ninguém.

Sim, Aécio está sob os cuidados do STF, onde tem amigos de fé, irmãos, camaradas como o ministro Gilmar Mendes, com quem manteve uma conversa telefônica no mínimo promíscua e, sob o ponto de vista da independência dos poderes, quase pornográfica, por ocasião de uma votação "importante" (para corruptos como Aécio) no Senado.

Quanto a Alckmin, voltou a ser o que sempre foi, um picolé de chuchu. Diante de toda a torcida tucana, recebeu um drible pelo vão das pernas dado por sua criatura, um certo João Doria. Graças à falta de lealdade de Doria (o que, em política, não chega a ser um defeito), Alckmin passou de jogador titular a vendedor de amendoins na arquibancada.

Sem foro privilegiado, Alckmin pode ser poupado pelo Ministério Público paulista, pela Justiça Comum, pela Justiça Eleitoral, pela grande imprensa e pela Polícia Federal, como tem ocorrido há anos, talvez por solidariedade de classe. Mas corre sério risco de nunca mais sair do ostracismo, depois da votação pífia obtida no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018, com apenas 4,7% dos votos.

Agora é hora de dizer aos tucanos que derrubaram festivamente Dilma Rousseff, naquele já distante 2016, jogando o Brasil nas mãos da quadrilha liderada por Michel Temer e ajudando a mergulhar o País numa crise sem precedentes: adeus, queridos.

Adeus, queridos!

Aproveitem a estadia na lata de lixo da História.

Que a terra do esquecimento lhes seja leve.

Ou não.


José Carlos Fineis é jornalista, escritor, editor de livros, sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda, cofundador do Terceira Margem - Coletivo de Blogueiros Independentes e da página Sorocaba Plural - Jornalismo Cidadão.



21 de fev. de 2019

Educação sem blablablá

Com muita honra e alegria, Referência Crítica em Jornalismo abre espaço para um articulista convidado, o professor Aldo Vannucchi – educador, escritor e principal articulador da criação da Universidade de Sorocaba (Uniso), da qual foi reitor e em que exerce atualmente o cargo de assessor especial da Reitoria. O tema do artigo é a importância do educador, pedagogo e filósofo brasileiro Paulo Freire, cuja obra é reconhecida e aplicada por escolas do mundo todo, o que não o coloca a salvo de uma corrente ideológica ora no poder, que promete bani-lo das escolas brasileiras. Aldo Vannucchi e Paulo Freire estiveram próximos em vários momentos, e de um desses encontros resultou o livro de Vannucchi “Paulo Freire ao vivo” (Loyola, 1983). Com a palavra, Aldo Vannucchi: “Educação sem blablablá”.
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Prof. Aldo Vannucchi (foto Agência
Sorocaba de Noticias/Secultur)

Aldo Vannucchi


Era 1980. Como anos atrás, em autoexílio, eu convivera com Paulo Freire, no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, ficamos amigos e consegui trazê-lo a Sorocaba para várias conferências, na Faculdade de Filosofia. Gravadas, datilografadas e revistas por ele, viraram o livro “Paulo Freire ao Vivo”. Numa dessas palestras, ao responder à pergunta sobre a acusação de que era marxista, Paulo respondeu: “...eu tive uma infância dura, cresci numa família cristã sem ser piegas. Evidentemente, recebi muito mito ideológico em torno do que se parecia que deveria ser cristão e não era. E um dos meus esforços na juventude foi começar a pôr para fora todos esses mitos, a me libertar dessas coisas, até que cheguei ao momento, há alguns anos, em que, finalmente, descobri que, na verdade, eu não sou cristão, sou um homem procurando tornar-se cristão... o que eu venho procurando é ser, é tornar-me cristão.”

Falecido em 1997, Paulo é hoje um dos educadores mais estudados e citados, mundo afora. Mas aqui no Brasil há quem deseje “expurgá-lo” das escolas. O presidente eleito afirmou que “vai entrar no Ministério da Educação com um lança-chamas e tirar Paulo Freire lá de dentro”. Por que tal repulsa? É pelas suas ideias marxistas, dizem, pela revolução socialista que propõe, pelos militantes esquerdistas que formou.

Paulo Freire em 1977 (foto Slobodan
Dimitrov/Wikimedia Commons
São objeções típicas de quem tem medo de mudança. O “perigo” da proposta de Paulo Freire é que ela, precisamente, consiste e insiste numa relação afetuosa de parceria e de diálogo entre educador e educando. “Não há saber mais nem saber menos. Há saberes diferentes.” Os professores, evidentemente, têm mais tempo e mais conteúdo de escolaridade, mas não conhecem o mundo de quem vive com ou sem salário mínimo, em área de risco, à beira de esgoto a céu aberto. Essa vivência do real tem tanto valor, no processo educativo, quanto o lote de conhecimentos do professor. Esse processo, portanto, é respeitoso e criativo. Faz os dois pensarem, cada um com o que sabe, e a partir daí os dois examinam a realidade do mundo em que agem e como torná-lo melhor.

Capa de "Paulo Freire
ao vivo", lançado em
1983 pela Ed. Loyola
Essa abertura para mudanças sociais é que apavora certa gente que deseja uma educação neutra, politicamente asséptica. Quando Paulo Freire acentua “não há quem sabe mais ou sabe menos: há saberes diferentes”, fica indicado o caminho para uma transformação social, uma verdadeira revolução cultural. O professor muda seu jeito de ensinar e o aluno acorda para o seu próprio valor. A vida de ambos toma outra dimensão. Muda a prática cotidiana na escola, na família, no trabalho, na Igreja, na rua. Instaura-se a democracia real de respeito de todos por todos.

É dessa democracia que o Brasil precisa. Democracia que não é blablablá, mas o povo se valorizando e valorizado por uma educação que respeita o saber popular e, com isso, mostra que cultura não é só de gente estudada. Cultura é tudo o que uma pessoa faz no mundo, transformando-o, seja um tijolo, seja uma canção. Adulto abatido pelo desemprego e crianças com fome no banco da escola, todos, no íntimo, são seres querendo ser mais, podendo ser mais, devendo ser mais. Estariam errados?


Aldo Vannucchi é educador, professor de filosofia e escritor. Mestre em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e licenciado em Pedagogia, foi professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (Fafi) e liderou o projeto de criação da Universidade de Sorocaba (Uniso), da qual foi o primeiro reitor, tendo exercido quatro mandatos consecutivos. Atualmente, é assessor especial da Reitoria e ouvidor da Uniso. É autor de 19 livros, entre eles: “Cultura brasileira: o que é, como se faz” (Loyola, 1999); “Deus e o diabo por trás das palavras” (Nankin, 2004); “Alexandre Vannucchi Leme: jovem, estudante, morto pela ditadura” (Contexto, 2014) e “Um padre diferente” (Eduniso, 2018).