23 de jul. de 2012

O jornal e a democracia (quando os princípios são honestos e transparentes, as queixas se esvaziam por si mesmas)



Por José Carlos Fineis



Cobrir uma eleição é sempre tarefa de grande responsabilidade para a imprensa, não apenas pelo desafio de manter o público bem informado sobre os fatos de campanha e os bastidores da corrida eleitoral, mas também pela necessidade de incorporar, em cada ação informativa - seja ela uma notinha, uma série de entrevistas ou um debate -, um propósito muito consciente de oferecer aos candidatos as mesmas oportunidades, bem como de vigiar para que o noticiário não venha, ainda que de maneira involuntária, a favorecer uma candidatura em detrimento das outras.

Somente com honestidade e coragem um órgão de imprensa é capaz de contribuir com a democracia. Honestidade, porque ser equânime é algo bem mais complexo do que apenas dividir o espaço em partes iguais para que os candidatos exponham suas plataformas. É aplicar as mesmas diretrizes, os mesmos princípios na identificação do fato jornalístico, seja ele referente a A, B ou C, e estabelecer a importância da notícia de acordo com a única referência possível, que é o interesse público, o direito do cidadão a receber informações que lhe permitam escolher corretamente.

É aí que entra a coragem, pois informar, muitas vezes, significa contrariar interesses. É normal, em campanhas eleitorais, candidatos se afirmarem perseguidos por determinado órgão de imprensa, que nada mais fez do que tornar pública uma informação relevante. Quando os princípios são honestos e transparentes, as queixas se esvaziam por si mesmas. O veículo de comunicação que se permite manipular por pressões partidárias comete o pior dos erros, que consiste em desonrar o mandato social recebido, em forma de confiança e preferência, de seus leitores, ouvintes e telespectadores.


(Trecho do editorial "O Cruzeiro e a democracia", publicado pelo jornal Cruzeiro do Sul de 22/7/2012. Acredito fortemente nisso, e mais um pouco: o jornalista que não acredita no poder transformador do jornalismo; o juiz ou promotor que perdem a confiança na Justiça; o policial que não vê mais diferença entre bandidos e mocinhos; o professor que acha que tanto faz dar aula como não dar - deveriam todos pedir o chapéu e ir para casa, buscar alguma coisa mais estimulante para fazer, deixando seus postos e salários aos que ainda tenham fé em si mesmos e tesão pela profissão.)



     

7 de abr. de 2012

Já vi esse título em algum lugar!




Por José Carlos Fineis


É difícil pedir para alguém: seja criativo. Parece tão inócuo quanto dizer a um guitarrista: sole como o David Guilmour. Ou a um jogador de futebol: dê passes como o Ademir da Guia. Quero dizer que, em grande medida, ser original é um talento, que não se pode impor às pessoas, pois nem toda a boa vontade do mundo fará com que elas sejam o que não são. Entretanto, naquilo que a originalidade depende apenas de suor e esforço, devemos persegui-la, e uma regra possível na correria diária poderia ser resumida da seguinte maneira: se você não consegue fazer algo fabuloso (um título de artigo, por exemplo), pelo menos procure não ser igual a todo mundo.

A citação do título de artigo como exemplo não é aleatória. Na verdade, é o motivo de ter escolhido este assunto. Na semana passada, redigi um artigo de jornal sobre o escândalo que envolveu o senador Demóstenes Torres e o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Com poucas exceções, quando a luzinha do título acende antes, costumo fazer o título depois do texto, pois geralmente algum trecho ou expressão do próprio texto acaba sugerindo naturalmente a linha do título. Neste caso, depois de escrever sobre os muitos contatos do bicheiro na política, o título que me veio à cabeça, quase que automaticamente, foi “Todos os homens de Cachoeira”, numa menção ao filme de Alan J. Pakula sobre o Watergate, All The President's Men.

Meu pecado foi não ter rejeitado essa primeira e sedutora ideia, que no momento não me pareceu tão óbvia. Trocadilhos com títulos de filmes, romances e peças de teatro são um recurso frequente dos articulistas e, geralmente, resultam boas soluções. Neste caso, porém, havia indícios de que a originalidade poderia ficar comprometida. “Todos os homens..." tornou-se uma citação clássica na imprensa brasileira. Nos anos 1990, um livro de Gustavo Krieger, Luiz Antonio Novaes e Tales Faria, sobre a ascensão e queda do ex-presidente Collor de Mello, recebeu o título de “Todos os Sócios do Presidente”. Pensando bem, a referência era previsível.

Tanto era, que não fui o único a recorrer a ele. Desconfiado de que poderia não ter sido muito original, busquei o título entre aspas no Google (depois da publicação) e surgiram 2.830 resultados. A maior parte desses milhares de links (acho que uns 99,9%) refere-se ao artigo de Catia Seabra e Fernando Mello, publicado pela Folha de S. Paulo na mesma data do meu (2/4) e reproduzido em blogues, sinopses e clippings por todo o Brasil. Meu texto foi republicado em alguns lugares e ajudou modestamente a inflar o número de resultados. Um consolo: no Google Notícias, só apareceu meu artigo. Sinal de que não era tão evidente assim.

Sei que a conclusão é um tanto óbvia, mas para evitar que o leitor tenha a sensação de estar lendo um jornal do ano passado, é preciso rejeitar sempre as primeiras sugestões que o cérebro apresenta. Alguns títulos são tão repetitivos que é incrível que ainda não tenham sido descartados. “Tragédia anunciada” é um deles (com a variação que também se tornou clássica, “Crônica de uma tragédia anunciada”). Outros que aparecem com frequência: “A pátria de chuteiras”. “Negócio da China”, “A bola da vez”, “Hora da verdade”, “Fogo cruzado”. Hoje está se alastrando na imprensa uma tendência de chamar a presidente Dilma Rousseff de dama de ferro, numa alusão à forma como a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher ficou conhecida. Esse, juro que não vou usar...

Nem sempre temos tempo e neurônios suficientes para criar títulos geniais, depois de um dia de trabalho pesado, de muitas pesquisas e de tentar sintetizar problemas econômicos, políticos ou sociais complexos em 3.700 toques. Mas devemos amarrar um barbante no dedo para lembrar de desconfiar sempre das ideias que surgem "naturalmente", como soluções prontas e acabadas. Rejeitar a primeira opção, pensar mais um pouco, rever o texto para encontrar possíveis expressões que possam ser “puxadas” para o título, são exercícios necessários, sempre. E, quando o título genial não vem, lembrar que a simplicidade é sempre uma opção honrada. Na falta de um título ultracriativo e bem bolado, é melhor ser despojado e evitar a tentação do lugar-comum.



   

22 de jan. de 2012

Gil de Mello morreu. Viva Gil de Mello!


Por José Carlos Fineis


Ainda não me convenci de que meu amigo Gil de Mello morreu. Sei que é lugar comum, mas continuo com a sensação de que ele, a qualquer momento, vai bater na minha porta, com aquele sorriso bonito, elegantemente vestido como da última vez que esteve em casa, um verdadeiro gentleman de colete bege e sapatos claros, mais parecendo um integrante da comissão de frente de uma escola de samba que fugiu por alguns instantes da passarela só para me convidar para um evento de que ele tomaria parte naquela noite.
Não tenho dúvida de que Gil era um dos grandes do teatro brasileiro. Era o nosso Zé Celso Martinez Corrêa, e, além de tudo, era um homem admirável. Sua história de vida é cheia de sacrifícios. Muito cedo, o pai faleceu e ele teve de arrumar um emprego para ajudar a mãe e os irmãos menores. Trabalhou quase a vida toda como vendedor de um pastifício. Casou-se mas logo se separou, por motivos que ele, sempre muito ético, não gostava de dizer. Criou sozinho seu filho João, sem ajuda de ninguém. Quando saía para trabalhar, deixava o menino trancado em casa, mas não havia nenhuma negligência nisso: apenas necessidade. Os dois sempre foram grandes amigos.
Como diretor de teatro, Gil de Mello enfrentou a censura à frente da peça Bastam dois para dançar um bom bolero, nos idos dos anos 1970, quando a ditadura estava no auge. Num festival de teatro, pressionado para mudar o enredo, combinou uma coisa com os censores e mandou os atores fazerem outra. A peça terminava com um nu frontal masculino, que foi uma explosão de rebeldia e incendiou a plateia. O público, extasiado mas temendo o pior, fez um cordão de isolamento e impediu que Gil fosse preso.
Mais recentemente, nos anos 90, Gil tirou Gota d'água (de Chico Buarque e Paulo Fontes) da gaveta depois de 25 anos sem ser montada, e não quis a glória de dirigi-la só para si, preferindo dividir a direção com o amigo Carlos Roberto Mantovani. Na única vez que o entrevistei, Gil chorou ao lembrar do velório da Mantovani na Oficina Cultural Grande Otelo. Quando retiraram o caixão, o público que estava na praça aplaudiu longamente. Essas coisas emocionavam Gil, e a forma como ele as contava, com a voz embargada e os olhos marejados, emocionava a gente.
Gil era autodidata e isso nos aproximava ainda mais. Admirava sua devoção pelo teatro e a forma como o praticava, sem estrelismo, sempre muito compenetrado e profissional. Entendia de luz, de som, de cenário. Homem vivido, comentava as reações dos personagens como se fossem pessoas reais. Por isso seu teatro era verdadeiro, não tinha essa afetação e esnobismo tão comuns em alguns artistas e em tantas produções. Era de vanguarda sem ser petulante. Sua inteligência era dessas que nos fazem sentir inteligentes, não das que nos deixam com a sensação de que somos burros.
Para resumir: Gil Pinheiro de Mello era o cara, e eu sempre me senti orgulhoso por ser seu amigo. Uma vez, quando divulgávamos a peça Gota d'água, ele se envolveu num acidente de carro com minha mulher, Sandra Nascimento. Fez uma barbeiragem na avenida Coronel Nogueira Padilha e quase me deixou viúvo. Chegaram os dois assustados em casa. Era um péssimo motorista, o que, em se tratando de trânsito sorocabano, equivale a dizer que era um sobrevivente. Viveu 81 anos muito bem vividos. Morreu sem estardalhaço. Eu não estava perto, mas imagino que talvez uma lágrima tenha rolado pelo seu rosto. Uma lágrima e um sorriso de compreensão, como quem diz: “Tudo bem, estou pronto.” É uma imagem bem Gil de Mello, bem teatral. Tenho certeza de que sua despedida deve ter sido mais ou menos assim.
Penso que, agora que Gil morreu, logo começará a ser valorizado, como ocorreu com Mantovani, outro lutador do teatro local. Não fosse o fato de que se tem de morrer, o que é péssimo em muitos sentidos, a morte poderia ser definida como um ótimo negócio, principalmente para artistas sorocabanos. Basta passar desta para melhor para ser reconhecido por aqueles que nem olhavam para seu lado e não lhe davam um tostão, quando vivo.
Nós do interior somos como os astecas, sempre esperando por um deus dourado que virá do Oriente, sempre com os olhos fixos no horizonte à espera de um cavaleiro emplumado. Não percebemos que os deuses estão aqui mesmo e tropeçamos neles todos os dias. Desde os tempos em que damas com pesadas saias desembarcavam de carruagens no teatro São Rafael, pulando de pedra em pedra para não sujar as barras com a lama vermelha das ruas, nossa cultura interiorana nos leva a esperar que os grandes talentos venham de São Paulo, do Rio ou ainda de mais longe, se hospedem no melhor hotel da cidade e, quando muito, sejam vistos em algum lugar público, com uns óculos escuros gigantescos, comendo uma de nossas pizzas ou aquela coxinha com catupiri que já boterizou tantas mulheres formosas por aqui.
Gente viva nos incomoda. Amamos o imaterial, o imagético. Homens e mulheres reais ocupam espaço, comem nossa sobremesa, pedem coisas, nem sempre cheiram bem e, ainda por cima, competem conosco pelas verbas, pelo espaço na mídia. Gostamos dos estrangeiros porque não são um dos nossos e porque somos colonizados, mas gostamos, principalmente, dos mortos, porque simplesmente não estão aqui. Um morto estrangeiro, então, nem se fala! Um morto é uma lacuna, é como um texto que podemos editar conforme o espaço que temos e a “verdade” que queremos ver por ele representada (e com a tranquilidade de saber que o fulano não irá reclamar). É diferente de um vivo que tem essa terrível mania de querer falar por si e discordar das coisas.
Fico pensando o que seria de um Oswald de Andrade se ainda fosse vivo e, por alguma contingência do destino, morasse em Sorocaba (os pais de Pagu tinham uma fazenda por aqui). Ririam dele nas festas por causa de seus ternos amassados? Condenariam sua glutonice e seu hábito de namorar mulheres jovens? Dariam medalhas a ele nas datas comemorativas, ou seria desprezado por não ter um Honda Civic e por ter recebido uma verba da Linc e não ter terminado seu projeto "ainda"? Seria recebido com pompas nas redações, para falar de seu livro mais recente, ou ficaria esperando nas recepções enquanto repórteres mal-humorados comentariam em voz baixa que “aquele chato está aí de novo” e tirariam a sorte para decidir quem iria atendê-lo?
Logo começará o processo de canonização de Gil de Mello. Surgirá um prêmio de teatro com seu nome. Quem sabe, uma ponte (seria maravilhoso, ele que era uma ponte viva entre as pessoas). Mas quero dizer que esse será outro Gil. Um Gil quadrado, por assim dizer; pasteurizado como o leite que engolimos toda manhã e enfeitado como bolo de casamento. Talvez, no aniversário de sua morte, ou quando um jornalista local resolver transformar sua história em livro (fica a pauta), sua melhor foto seja publicada numa capa de caderno, com alguma frase bonita entre aspas e um título que pretenderá traduzir a essência de seu espírito por toda a eternidade. Algo pueril e lacônico, exatamente como ele não era. Algum editor esperto perceberá que é preciso “resgatar” Gil, antes que outro o faça, e isso será feito facilmente, ainda que sem muita profundidade, já que ele era mesmo um gigante.
Fico deprimido com a justiça tardia, que chega depois que a pessoa já não está mais circulando por aí, nem tem projetos e sonhos por realizar. Mas, também, o que esse cara queria, com sua cabeça branca, seus olhos morteiros, seu sorriso fácil? Gil era humano demais, vivo demais, falante demais para ser endeusado pela intelligentsia asteca. Assim como agora incensam Mantovani, que vivia por aí pedindo patrocínios e enfrentava dificuldades tremendas para levar suas peças à cena, as portas todas se abrirão para Gil a qualquer momento, e ninguém perceberá a ironia disso tudo, já que ele não pode mais passar por elas.
Agora Gil está de bom tamanho para nossa tradição, que só consegue enxergar o que não é visível, o que vem de longe (e logo voltará para longe), o que não está aqui. Sinto saudades do Gil verdadeiro e sei que ele estava pouco se lixando para o sucesso na terrinha de Baltasar Fernandes, mas lamento que ele não tenha sido mais festejado e reconhecido, pois era um dos grandes, sem dúvida, e era nosso! O que farão por sua memória não faz muita diferença, agora; e nem todas as pontes do mundo, com placas enormes contendo seu nome, poderiam nos informar quem foi Gil de Mello, de verdade. Gil era um sonhador. Sua matéria-prima era a emoção. Ele a transformava em belas peças de teatro, que marcaram quem as assistiu por toda a vida. Como esquecer de Gota D'água? Como esquecer de Gil descendo dos andaimes da iluminação depois da peça, para nos dar um abraço apertado e chorar no nosso ombro?
A história nos ensina lições preciosas todos os dias, mas só as aprendemos tarde demais. Um vez eu disse que existem duas formas de fazer sucesso em Sorocaba: ser de fora e vir para cá ou ser daqui e ir para fora. Existe também essa terceira opção, que me recuso a aconselhar aos jovens artistas: bater as botas. No dia em que Gil virar nome de rua, ou de praça, ou de ponte, talvez eu me dê conta de que ele não virá mais me visitar. Quando um artista de Sorocaba é reconhecido por seus conterrâneos, só então podemos ter certeza de que ele morreu.