27 de jul. de 2018

Fake news: o problema é mais embaixo


Quase todos os veículos se dizem imparciais – é como que uma formalidade, por uma questão de imagem pública –, mas os que praticam verdadeiramente a imparcialidade são raros. Agem mais ou menos como o Millôr quando se definiu, ironicamente, como um homem democrático, que respeitava as opiniões de todos, desde que concordassem com ele.

Por José Carlos Fineis

Fake news é mesmo um problemão. Mas a maior fake news de todas é aquela em que um veículo afirma ser democrático e pluralista e, no dia a dia, pratica exatamente o contrário: exclui segmentos, abraça ideologias de classe, direciona a pauta para não dar espaço a quem é de outra corrente, coloca interesses de grupos e pessoas acima dos interesses coletivos, criminaliza movimentos legítimos, põe em evidência apenas aqueles que representam sua forma de ver o mundo, acoberta as falhas dos amigos e prega "o rigor da lei" para os que pensam diferente – tudo isso, sob uma falsa aura de independência e imparcialidade.

Não estou aqui dando indiretas para este ou aquele veículo, mesmo porque os veículos mudam com o tempo: em algumas fases fazem bom jornalismo; em outras, fazem bobagem. Então, não há como avaliá-los sem considerar, pelo menos, sua importância pretérita e, confiando que os comportamentos bizarros não durem para sempre, sua capacidade potencial de retomarem o caminho da honestidade jornalística e voltarem a ser úteis um dia. "Veja" e "Istoé", por exemplo, já foram grandes revistas. Hoje nem sei como definir o jornalismo que praticam. Jornalismo de nicho, talvez. Mas, se sobreviverem às opções erradas que seus dirigentes fizeram, podem ainda voltar a ter alguma credibilidade e prestar bons serviços aos leitores.

(Um parêntese importante. Essa constatação vale também para a TV, que deve ser a única ou principal fonte de informação de 90% dos brasileiros. Por acaso, centrei o foco, neste artigo, na imprensa escrita. Porém, o mesmo processo ocorre em muitos telejornais. O poder que o Jornal Nacional tem sobre a sociedade brasileira é descomunal. E todos sabem, ou já deveriam ter percebido, que ali a pauta é bem dirigida. Não existe uma linha que não corresponda à agenda da Rede Globo, a qual, por sua vez, dá até medo de pensar em quais agendas está atrelada.)

O fake – não as fake news, mas o fake journalism dos órgãos ditos sérios, ou seja, o próprio processo de seleção, abordagem, produção e apresentação das notícias, mais intestinal e perigoso do que as fake news – é um mal que assola a imprensa, à direita e à esquerda. Quase todos os veículos se dizem imparciais – é como que uma formalidade, por uma questão de imagem pública –, mas os que praticam verdadeiramente a imparcialidade são raros. Agem mais ou menos como o Millôr quando se definiu, ironicamente, como um homem democrático, que respeitava as opiniões de todos, desde que concordassem com ele.

De toda forma, é preciso acreditar no poder dos leitores de regenerar o jornalismo de fora para dentro, diante da frouxidão dos que, por opção, se recusam a fazê-lo de dentro para fora. E isso se faz prestigiando o que existe de bom e honesto no meio, não aceitando gato por lebre, mostrando que o verdadeiro patrão, em qualquer veículo, não é nem o dono, nem o gerente, nem o editor-chefe. É o leitor. Sem leitor, literalmente, não tem negócio. E a mentira repetida mil vezes não se torna verdade, como querem crer os discípulos de Goebbels. Sem leitores, ela ecoa no vazio.

(Ilustração: Pinóquio por Enrico Mazzanti, Florença, 1883)

José Carlos Fineis é jornalista, editor de livros e produtor de vídeos, e sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda - www.lojadeideias.com.br

15 de jul. de 2018

E nós, será que somos os cidadãos que o Brasil espera para o futuro?

Reprodução
Muitos vídeos deixariam de ser gravados se, antes de ceder impulsivamente ao desejo de colocar a cara na telinha, cada um dos participantes fizesse esse simples exercício de autoanálise, no silêncio de seu quarto, a sós com sua consciência e seus botões

Por José Carlos Fineis

É sempre complicado criticar qualquer coisa relacionada à Rede Globo, pois isso se tornou lugar-comum – quase um vício para muitos brasileiros que, apesar disso, por motivos que a razão desconhece, continuam vendo a Globo e mantendo com a emissora uma relação de amor e ódio. Mas, se é complicado, eis aí um bom motivo para mergulhar de cabeça no tema, até porque o objetivo deste artigo não é propriamente criticar a Globo, e sim comentar o projeto “O Brasil que eu quero” em seu sentido mais amplo – incluindo-se aí, evidentemente, o sentido político que permeia quase todas as coisas.

Quando se fala em TV aberta, por vezes é difícil dissociar o serviço noticioso do marketing institucional e da "linha de shows" – e estes, por sua vez, das posições políticas, que podem ser ditadas por relações de amizade, simpatias ideológicas ou interesses comerciais e econômicos. Em alguns casos, esses elementos se fundem de tal forma que se torna impossível classificar as produções conforme sua utilidade ou objetivo.

No caso do projeto “O Brasil que eu quero”, a ideia tanto pode ter sido concebida pelo departamento de Jornalismo quanto pelo de Marketing. No entanto, qualquer que seja a origem, está claro que a iniciativa extrapola o terreno da comunicação, para assumir um contorno bem mais ambicioso. É indisfarçável o desejo de enfatizar o “poder” de uma organização que se imagina capaz de mobilizar multidões e pautar os rumos da vida nacional.

Seja qual for a intenção, entretanto, ela se mostra equivocada por alguns motivos óbvios e que poderiam ter sido previstos logo na primeira reunião de planejamento. O mais evidente, mas não o principal, é que projetos massivos como esse, com inserções em todos os telejornais e por um longo período de tempo, exaurem rapidamente o que poderia haver de novidade na fórmula e se tornam, em poucos dias, monótonos e cansativos.

A menos que o objetivo seja vencer pelo cansaço (estratégia que não funciona quando o receptor tem um controle-remoto na mão e aprendeu a aproveitar esses vazios de programação para ir ao banheiro), o fato é que as opiniões sobre o país, desde há muito marteladas sem grandes variações nas redes sociais, constituem um acervo bastante limitado e que, previsivelmente, levaria – como de fato levou – a um círculo asfixiante de opiniões recicladas.

Há muito tempo não se via, na TV brasileira, uma aposta tão alta – e isso dá o que pensar. No canal do projeto na internet, onde estão publicados todos os vídeos levados ao ar desde o primeiro dia, existiam até o dia 12 de julho nada menos que 275 páginas com 20 inserções cada, sendo que cada inserção apresenta em média entre cinco e sete vídeos de 15 segundos. Numa conta por alto, são bem mais de 30 mil vídeos, cuja soma ultrapassa as 120 horas de programação – e note-se que a emissora promete estender a cantilena, iniciada em março, até as vésperas das eleições, em setembro.

À já citada saturação gerada pela limitação do repertório, soma-se o fato de que, evidentemente, nem tudo o que os telespectadores submetem à emissora pode ser veiculado – e aqui ingressamos num campo mais preocupante, o da possível manipulação de conteúdo. Quando se convoca a população a dizer o que pensa, é previsível que surjam conteúdos inconvenientes e impublicáveis, como, por exemplo, críticas à própria Globo ou à excessiva liberalidade como as concessões de TV são utilizadas, ou ainda falas simpáticas a correntes político-ideológicas que não agradam à cúpula da emissora, ou contrárias aos interesses de seus proprietários ou patrocinadores.

Esse tipo de conteúdo não se vê nas inserções, levando a crer que ou existe de fato um filtro interno, ou os próprios espectadores se impuseram uma autocensura, deixando de enviar conteúdos que supõem não terem chance de ser veiculados. Para me certificar de que essa minha percepção, formulada como espectador eventual dos telejornais da Globo, não era injusta ou infundada, consultei aleatoriamente uma amostragem de 60 depoimentos no site da emissora. E confirmei que a quase totalidade dos vídeos contém clamores genéricos por “educação de qualidade”, “apoio aos produtores rurais”, “mais oportunidades de empregos aos jovens”, "menos corrupção" – enfim, uma ladainha circular de anseios antigos e massificados. As exceções ficam por conta de pessoas que aproveitam o espaço na TV para protestar contra obras abandonadas, problemas ambientais e carências de seus municípios – aspectos pontuais que, de toda forma, ainda conferem alguma utilidade concreta ao projeto.

Algumas lacunas são clamorosas. Não se veem, por exemplo, críticas ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público, órgãos que também têm muitas mazelas, como o auxílio-moradia pago a quem não precisa, para não falar na já proverbial morosidade. Não encontrei uma palavra sequer sobre juízes que desprezam a liturgia do cargo, opinando publicamente sobre processos que vão julgar – uma aberração jurídico-institucional que escandaliza a muitos no Brasil de hoje. Nada, nem por meio de indiretas, sobre os erros, por vezes intencionais e grosseiros, da chamada grande imprensa. Nem uma menção à violência policial, ao corte dos investimentos em saúde e educação, à supressão de direitos trabalhistas, à troca de favores entre governo federal e parlamentares para evitar que um presidente da República fosse alvo de investigação.

A essas ausências soma-se um outro problema grave, também relacionado à concepção e ao direcionamento, que começa pela própria formulação da pergunta: “Que Brasil você quer para o futuro?” Existem, nessa proposição, duas falhas conceituais gritantes, que induzem a uma postura e balizam, por antecipação, os tipos de temas e abordagens desejados. A primeira falha é colocar, sintaticamente, o cidadão de um lado e o Brasil de outro, como se este não fosse parte integrante daquele. A segunda é investir essa "pessoa do povo" na condição de quem deseja ou precisa ser servido, e não de alguém que é parte ativa da História e, como tal, detém uma parcela pessoal e intransferível de responsabilidade.

Menos demagógico e mais produtivo teria sido convidar os brasileiros a dizerem como imaginam que podem mudar a realidade que os cerca, a partir de seus campos de atuação. A campanha, como concebida, coloca os participantes na posição de críticos dos outros – os políticos, em particular. Ignora-se o fato de que o Brasil que aí está – assim como o Brasil “do futuro” – nada mais é do que o resultado da soma de todas as atitudes individuais, certas ou erradas. E que os políticos, esses seres que "não nos representam", não vieram de Marte em um disco-voador. Eles só estão na vida pública porque, pouco fiscalizados pela imprensa e pelos eleitores, receberam e continuam recebendo votos de pessoas como eu e como você.

O resultado desse projeto de formulação equivocada, para dizer o mínimo, é uma coleção de desejos, quase exigências, que inspiram em seu conjunto uma atitude dissimulada e arrogante. Penso que, antes de ligar o celular para dizer qual o Brasil que se deseja para o futuro, a melhor atitude seria procurar um espelho e perguntar a si mesmo: “Será que tenho sido o tipo de cidadão de que o Brasil precisa para ser um grande país?” Muitos vídeos deixariam de ser gravados se, antes de ceder impulsivamente ao desejo de colocar a cara na telinha, cada um dos participantes fizesse um exercício de autoanálise, no silêncio de seu quarto, a sós com sua consciência e seus botões.

Existe uma máxima muito conhecida, pronunciada por John F. Kennedy ao tomar posse na Presidência dos Estados Unidos, em janeiro de 1961, que exemplifica bem esse raciocínio. Ele disse: “Não pergunte o que o seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país.” É um ponto de vista que sintetiza a importância dos valores e atitudes individuais, enquanto elementos de construção de uma nação onde a igualdade e as oportunidades tenham alguma chance de existir; um país onde os direitos sejam respeitados e as pessoas, valorizadas como imaginam que merecem.

É no sentido oposto que caminha a campanha da Rede Globo, como que a incutir em cada brasileiro a ideia de que o cidadão é um objeto passivo a ser atendido, uma espécie de reizinho sem cetro nem coroa que só tem sua voz – veiculada gentilmente pela emissora, desde que não ultrapasse os 15 segundos – para dizer aos “políticos” o que eles devem fazer e como o Brasil deve ser. A pretexto de se oferecer espaço a todos, na verdade o que se faz é confinar a reflexão sobre os problemas nacionais à periferia dos temas realmente importantes e que envolvem assuntos espinhosos, alguns dos quais acabam resvalando no próprio comportamento dos órgãos de comunicação.

Impossível imaginar para que servirá esse acervo descomunal de desejos capturados em vídeo, além de ocupar muitos gigabytes nos servidores da emissora. Primeiro, porque os políticos já sabem de tudo isso – certamente não há, nessas muitas horas de vídeo, algo que seja novo para eles. Segundo, porque nós, brasileiros, também já sabemos. E, finalmente, porque a simples repetição de clichês genéricos e superficiais, desprovida de qualquer forma de engajamento, organização ou mesmo um esforço consciente no sentido de votar em alguém que mereça, não tem o poder de mudar coisa alguma.

Talvez o grande beneficiário da iniciativa seja essa coisa que os estudiosos da mente chamam de ego. O ego da Rede Globo, por promover durante vários meses uma pseudomobilização de milhares de pessoas, levadas a crer que suas opiniões são valorizadas pela emissora, desde que, logicamente, não se contraponham aos cânones da mesma. E, na outra ponta, o ego dos participantes (ou seriam coadjuvantes?), satisfeitos por aparecerem na TV uma vez na vida, ainda que apenas para somar suas reivindicações e lições de moral a um vozerio confuso – por sinal, muito bem representado pelo áudio caótico da vinheta do projeto. E felizes, com seus poucos segundos de fama, por imaginar que alguém, além deles próprios, se interessa por aquilo que têm a dizer.


José Carlos Fineis é jornalista, editor, produtor de vídeo e sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda.