21 de fev. de 2019

Educação sem blablablá

Com muita honra e alegria, Referência Crítica em Jornalismo abre espaço para um articulista convidado, o professor Aldo Vannucchi – educador, escritor e principal articulador da criação da Universidade de Sorocaba (Uniso), da qual foi reitor e em que exerce atualmente o cargo de assessor especial da Reitoria. O tema do artigo é a importância do educador, pedagogo e filósofo brasileiro Paulo Freire, cuja obra é reconhecida e aplicada por escolas do mundo todo, o que não o coloca a salvo de uma corrente ideológica ora no poder, que promete bani-lo das escolas brasileiras. Aldo Vannucchi e Paulo Freire estiveram próximos em vários momentos, e de um desses encontros resultou o livro de Vannucchi “Paulo Freire ao vivo” (Loyola, 1983). Com a palavra, Aldo Vannucchi: “Educação sem blablablá”.
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Prof. Aldo Vannucchi (foto Agência
Sorocaba de Noticias/Secultur)

Aldo Vannucchi


Era 1980. Como anos atrás, em autoexílio, eu convivera com Paulo Freire, no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, ficamos amigos e consegui trazê-lo a Sorocaba para várias conferências, na Faculdade de Filosofia. Gravadas, datilografadas e revistas por ele, viraram o livro “Paulo Freire ao Vivo”. Numa dessas palestras, ao responder à pergunta sobre a acusação de que era marxista, Paulo respondeu: “...eu tive uma infância dura, cresci numa família cristã sem ser piegas. Evidentemente, recebi muito mito ideológico em torno do que se parecia que deveria ser cristão e não era. E um dos meus esforços na juventude foi começar a pôr para fora todos esses mitos, a me libertar dessas coisas, até que cheguei ao momento, há alguns anos, em que, finalmente, descobri que, na verdade, eu não sou cristão, sou um homem procurando tornar-se cristão... o que eu venho procurando é ser, é tornar-me cristão.”

Falecido em 1997, Paulo é hoje um dos educadores mais estudados e citados, mundo afora. Mas aqui no Brasil há quem deseje “expurgá-lo” das escolas. O presidente eleito afirmou que “vai entrar no Ministério da Educação com um lança-chamas e tirar Paulo Freire lá de dentro”. Por que tal repulsa? É pelas suas ideias marxistas, dizem, pela revolução socialista que propõe, pelos militantes esquerdistas que formou.

Paulo Freire em 1977 (foto Slobodan
Dimitrov/Wikimedia Commons
São objeções típicas de quem tem medo de mudança. O “perigo” da proposta de Paulo Freire é que ela, precisamente, consiste e insiste numa relação afetuosa de parceria e de diálogo entre educador e educando. “Não há saber mais nem saber menos. Há saberes diferentes.” Os professores, evidentemente, têm mais tempo e mais conteúdo de escolaridade, mas não conhecem o mundo de quem vive com ou sem salário mínimo, em área de risco, à beira de esgoto a céu aberto. Essa vivência do real tem tanto valor, no processo educativo, quanto o lote de conhecimentos do professor. Esse processo, portanto, é respeitoso e criativo. Faz os dois pensarem, cada um com o que sabe, e a partir daí os dois examinam a realidade do mundo em que agem e como torná-lo melhor.

Capa de "Paulo Freire
ao vivo", lançado em
1983 pela Ed. Loyola
Essa abertura para mudanças sociais é que apavora certa gente que deseja uma educação neutra, politicamente asséptica. Quando Paulo Freire acentua “não há quem sabe mais ou sabe menos: há saberes diferentes”, fica indicado o caminho para uma transformação social, uma verdadeira revolução cultural. O professor muda seu jeito de ensinar e o aluno acorda para o seu próprio valor. A vida de ambos toma outra dimensão. Muda a prática cotidiana na escola, na família, no trabalho, na Igreja, na rua. Instaura-se a democracia real de respeito de todos por todos.

É dessa democracia que o Brasil precisa. Democracia que não é blablablá, mas o povo se valorizando e valorizado por uma educação que respeita o saber popular e, com isso, mostra que cultura não é só de gente estudada. Cultura é tudo o que uma pessoa faz no mundo, transformando-o, seja um tijolo, seja uma canção. Adulto abatido pelo desemprego e crianças com fome no banco da escola, todos, no íntimo, são seres querendo ser mais, podendo ser mais, devendo ser mais. Estariam errados?


Aldo Vannucchi é educador, professor de filosofia e escritor. Mestre em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e licenciado em Pedagogia, foi professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (Fafi) e liderou o projeto de criação da Universidade de Sorocaba (Uniso), da qual foi o primeiro reitor, tendo exercido quatro mandatos consecutivos. Atualmente, é assessor especial da Reitoria e ouvidor da Uniso. É autor de 19 livros, entre eles: “Cultura brasileira: o que é, como se faz” (Loyola, 1999); “Deus e o diabo por trás das palavras” (Nankin, 2004); “Alexandre Vannucchi Leme: jovem, estudante, morto pela ditadura” (Contexto, 2014) e “Um padre diferente” (Eduniso, 2018).