1 de out. de 2018

A história de como o PSDB abriu mão de entrar no palácio pela porta da frente e colocou Bolsonaro e o PT no segundo turno


Não tinha dúvidas de que seria muito mais inteligente os tucanos esperarem dois anos para vencer as eleições (talvez com facilidade, pois eram então o polo oposto do PT) e receberem a faixa presidencial em um dia ensolarado de Brasília, com aviões da esquadrilha da fumaça a cruzar o céu e música de banda a encher o ar -- e subirem a rampa do Palácio do Planalto com passos dignos, para ingressar no poder pela porta da frente

Por José Carlos Fineis(Revisto e ampliado em 3/10/2018)

Escrevo a uma semana das eleições e acredito que muita coisa pode acontecer nos próximos dias. Até mesmo o candidato Ciro Gomes (PDT) ultrapassar Jair Bolsonaro (PSL) e ir para o segundo turno contra Fernando Haddad (PT). Ou ultrapassar Haddad e enfrentar Bolsonaro no segundo turno.

Antes de prosseguir, preciso alertar que nunca acerto previsões. Achei que Trump não ganharia, ganhou. Achei que não dariam o impeachment em Dilma, deram. Achei que não condenariam Lula por causa do tríplex, condenaram. Aqui que na minha cidade (Sorocaba, interior de São Paulo) o então candidato a prefeito José Crespo não se elegeria, se elegeu. Achei que o PSDB não confiaria em Temer para governar o país, confiou. Achei que os tucanos não iriam para o governo Temer, foram. Achei que Temer cairia quando o escândalo da JBS veio à tona, não caiu. Achei que Cunha jamais seria preso, foi. Enfim. Não tenho bola de cristal. E talvez meu defeito seja analisar a política pela ótica da coerência, quando o que mais falta à política é coerência.

Apesar de não ser nenhuma Mãe Diná, no entanto, preciso deixar registrado, neste momento, que alguma coisa eu antevi com clareza dois anos atrás – e isso tudo está se concretizando agora. Em agosto de 2016, quando o Congresso tirou do poder Dilma Rousseff, eu tive uma antevisão do futuro e vi a história dos anos seguintes se desenrolar diante dos meus olhos. É essa história que escrevo agora. A história de como o PSDB, em sua ânsia infantil de chegar ao poder, abriu mão de entrar no palácio pela porta da frente, e colocou Fernando Haddad e Jair Bolsonaro no segundo turno em 2018.

Quando começaram a falar em impeachment da Dilma, eu, que não me considero especialista em política, mas sou obrigado a pensar em política devido a meu trabalho, considerei com vários colegas:

– Por que fariam isso? O governo Dilma não está indo bem. A popularidade dela despencou. O desemprego está aumentando. Por que não esperariam dois anos para vencê-la nas urnas, legitimamente? Não acredito que vão tirá-la agora e jogar o país numa aventura, nas mãos do Michel Temer, que todos sabem ser um político fisiológico, que sempre fez da política um balcão de negócios! Eles (os tucanos) só vão se queimar se fizerem isso.

Na minha forma de ver, eu acreditava que seria mais proveitoso para os tucanos deixarem Dilma desidratar com a crise, e construir um discurso baseado nos erros da política econômica do PT. Não tinha dúvidas de que seria muito mais inteligente os tucanos esperarem dois anos para vencer as eleições (talvez com facilidade, pois eram então o polo oposto do PT) e receberem a faixa presidencial em um dia ensolarado de Brasília, com aviões da esquadrilha da fumaça a cruzar o céu e música de banda a encher o ar -- e subirem a rampa do Palácio do Planalto com passos dignos, para ingressar no poder pela porta da frente.

Esse seria, aos olhos de qualquer pessoa que não estivesse enlouquecida pela ideia do poder instantâneo, o desenrolar natural dos fatos. E mesmo que Lula tentasse se candidatar, o PT provavelmente estaria tão desgastado com a crise – e o fantasma da crise, fortalecido diuturnamente pela Globo, Globonews, Estadão, Época, Veja e IstoÉ – que o candidato tucano teria grandes chances, pela primeira vez desde FHC, de ser eleito presidente, e assumir para um mandato legitimamente conquistado.

O que se viu foi o contrário. Optou-se pelo impeachment, que para muitos foi um golpe, e, para meu maior espanto, José Serra, Aloysio Nunes e companhia bela não só apoiaram Temer em sua investida pirata para tomar o poder como embarcaram em seu governo, assumindo ministérios. Sinistros, entraram no governo pela porta dos fundos, num dos capítulos mais constrangedores da história desse partido.

(Aqui é bom abrir um parêntese para que eu expresse minha opinião sobre um fato que julgo relevante. Dizem os antipetistas que foi o PT quem fez de Temer vice. Isso é fato. Mas quem fez de Temer presidente foi o PSDB, aliado ao que existe de mais radical na direita – ressuscitada com o MBL e afins – e ao que existe de mais fisiológico no Congresso.) Ponto, parágrafo.

Fez-se a ruptura, dentro da lei, como dizem. Uma presidente eleita foi deposta por um negócio (pedaladas fiscais) que, em outra conjuntura política, valeria quando muito um puxão de orelhas do Tribunal de Contas da União. Tivemos dois anos de governo ultrajante, o mais desastroso e impopular da história. A pauta patronal, ditada pela Fiesp, tornou-se prioridade nacional. Votou-se a Reforma Trabalhista sem discussão alguma com a sociedade. Metade dos amigos de Temer estão presos; ele próprio e a outra metade resistem porque ainda têm o controle do Congresso e foro privilegiado. 

É até estranho que alguns tucanos se digam arrependidos por terem embarcado nessa aventura. Arrependimento a gente sente quando faz algo que não imagina que vai dar errado. A autocrítica do ex-presidente do partido, Tasso Jereissati, não tem nada de novo além do fato de que alguém do PSDB, finalmente, assumiu o erro. Diante do fiasco do governo Temer, alguns tucanos pediram para ir ao WC e não voltaram mais. Serra teve dores nas costas. Outros estão lá até hoje, ao lado de figuras suspeitas como o Gato Angorá, terminando de sujar suas já enlameadas biografias.

Aécio caiu em desgraça por um desses acidentes de percurso. Seria a vez do Serra ser o presidente. O sonho de uma vida inteira poderia se realizar, por fim. Mas cadê Serra? Está na moita, esperando que o Supremo arquive o inquérito sobre os vinte e tantos milhões que recebeu a título de “caixa dois”. E, mesmo que não estivesse denunciado, seu partido não teria, como se diz, musculatura para correr os 100 metros com barreiras da campanha eleitoral.

Abriu-se um vácuo de legitimidade no poder. Jair Bolsonaro, com seu jeitão de colega pateta que todo mundo tem – aquele que fala bobagem pelos cotovelos, conta piadas sujas e todo mundo gosta porque é meio néscio e ninguém leva a sério –, ocupou o espaço espertamente, apresentando-se como o primeiro e único antipetista, que não só vai consertar os problemas do país mas também os que ele imagina que existem na nossa família. E muitos o abraçaram, ou porque se identificaram com ele, ou porque acreditaram em suas promessas, ou porque veem nele alguém capaz de afastar o risco de um novo governo petista.

Lembrem-se: o polo oposto de Lula e do PT, pelo transcorrer natural dos fatos (sem impeachment, com Dilma governando até o fim), seriam os tucanos. Foi assim desde 1994. Em nenhuma outra circunstância histórica, senão nessa conjunção muito particular de fatores, Bolsonaro deixaria de ser o tradicional bufão do baixo clero do Congresso para se tornar um candidato a presidente levado a sério.

Neste momento, vejo um Alckmin tentando desesperadamente colocar-se como o único capaz de vencer Haddad no segundo turno, quando na verdade, se existe alguém com possibilidades de ultrapassar Bolsonaro ou Haddad na reta final, é Ciro Gomes, e olha lá. Os próprios tucanos já desistiram de sua candidatura. 

Vejo a Globo dando destaque para o #elenão e a Veja publicando dossiês secretos sobre Bolsonaro. Seria por amor ao jornalismo ou porque as pesquisas constataram que Bolsonaro pode não bater Haddad no segundo turno, e se apavoram com a perspectiva de terem de engolir um novo governo petista?

Acredito que o Brasil, hoje, divide-se em duas grandes forças políticas: o PT e os que são contra o PT. Se os votos do Bolsonaro forem compostos por dois terços de pessoas que votam nele, e não contra o PT, talvez seja muito. O antipetismo arraigado é mais forte que o bolsonarismo. O mais provável é que dois terços sejam de antipetistas e um terço, de eleitores incondicionais do ex-capitão.

Agora, façamos um exercício matemático. Diante da possibilidade de vitória de Haddad no segundo turno, pelo menos metade dos eleitores de Bolsonaro – os antipetistas -- pode debandar, já no primeiro turno, para o candidato que tiver mais condições de vencer Haddad. E o voto útil, neste caso, tem nome: Ciro Gomes. Que está longe de representar a direita, mas pelo menos não é do PT.

O mesmo voto útil pode migrar no sentido contrário, para Ciro, se eleitores de Haddad porém não petistas incondicionais desconfiarem que ele tem menos chances que o petista de bater Bolsonaro.

Está é uma medição de forças entre os que rejeitam Bolsonaro veementemente e os que não admitem o PT de volta ao poder. Então, os eleitores tendem a votar no primeiro turno pensando no segundo. Será uma votação extremamente pragmática e movida a repulsa, mas que a paixão.

O voto útil antiPT poderia ser de Alckmin, se ele não fosse tucano, ou se os tucanos não tivessem embarcado no sonho delirante de chegar ao poder via impeachment e via Temer. A maldição toda da crise, que estava nas mãos de Dilma e pelo rumo natural das coisas reduziria a quase nada a força eleitoral do PT -- até porque a oposição minou seu segundo mandato com pautas-bomba e praticamente travou seu governo --, foi assumida festivamente pelo PSDB, naquele momento de votos "sim" com bandeiras do Brasil nas costas, de cartazes com a frase “adeus, querida”, de panelaços nas varandas gourmet, enfim: aquele momento de ruidosa ruptura com a ordem institucional, em que se abriu a caixa de Pandora e todos os males se espalharam pelo Brasil, contaminando em primeiro lugar os que estavam mais perto dela, aqueles justamente que a abriram.

Talvez eu esteja errado. Talvez minha previsão não se concretize. Talvez Bolsonaro vá para o segundo turno e perca para Haddad. Ou talvez Bolsonaro vá para o segundo turno e, com as forças antipetistas reunidas em torno de si, vença Haddad.

Mas, passando em revista minhas premonições de 2016, durante a fase do impeachment, vejo que tive alguma clarividência em muito do que percebi que ocorreria, e de fato ocorreu:

• Achava que Temer não era confiável e que não devia ser apoiado pelos tucanos. Realmente, não era e não devia.

• Acreditava que o PSDB perderia credibilidade e espaço político se ingressasse no governo Temer, e de fato perdeu.

• Acreditava que Temer faria um péssimo governo, o que só aumentaria as chances de o PT se recompor e voltar com força em 2018. Temer fez um governo sofrível e o PT aí está, com vaga no segundo turno.

• Acreditava que a ruptura com a ordem institucional, representada pelo impeachment (ainda que amparada em filigranas jurídicas), abriria caminho para outras rupturas de toda a ordem, e as decisões posteriores do Tribunal Superior Eleitoral sobre os crimes eleitorais de Temer (em ação movida pelo PSDB), o indulto do Supremo Tribunal Federal a Aécio Neves, que continua senador apesar de flagrado em constrangedor pedido de propina, a compra de votos dos congressistas por Temer, para negar ao Supremo autorização para processá-lo, aí estão para provar que, de alguma maneira, eu tive uma antevisão da desordem toda que sobreviria.

Poderia dizer que também previ o surgimento de um candidato messiânico, um suposto outsider no estilo de Bolsonaro, com um discurso forte contra “tudo o que está aí”, mas isso era tão óbvio que não precisaria ser especialista nem vidente para antever.

Essa é a história resumida, segundo minha versão que é apenas uma entre muitas outras, sobre como o PSDB de Fernando Henrique, José Serra, Geraldo Alckmin, Aloysio Nunes e Aécio Neves abriu mão de uma vitória quase certa em 2018 para amargar uma nova e humilhante derrota, já no primeiro turno das eleições presidenciais.

Em poucas palavras, o antipetismo exacerbado e o impeachment, somados à desastrosa participação no governo Temer e ao escorregão de Aécio Neves – que, sem trocadilho, encerrou sua carreira e transformou suas ambições políticas em pó –, criaram o caldo de cultura ideal para o crescimento de Bolsonaro e o fortalecimento do PT.

Se você é antipetista ou teme um governo de Bolsonaro, resta-lhe um consolo. Eu quase sempre erro previsões. Pode ser que algum outro ganhe esta eleição. Entre o momento em que escrevo e o fechamento das urnas, muita coisa ainda pode acontecer. Até um Alckmin, que corre na pista como um ganso gordo batendo as asinhas curtas, decolar finalmente nas asas do antipetismo e do antiesquerdismo e chegar ao segundo turno para vencer Bolsonaro ou Haddad.

Mas saímos do campo das possibilidades e entramos no da fisica quântica, ou coisa parecida.


(Na foto, o presidente Temer recebe Fernando Henrique Cardoso e Aécio Neves, entre outras lideranças do PSDB, para jantar em 25 de novembro de 2016. Foto: Beto Barata/Presidência da República/Fotos Públicas)


José Carlos Fineis é jornalista, produtor de vídeo, sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Editorial, Jornalismo e Edição Ltda., cofundador e coeditor da página Sorocaba Plural – Jornalismo Cidadão. As opiniões aqui expressas são de responsabilidade única do autor, e não refletem o pensamento de Sorocaba Plural ou da Loja de Ideias.  



24 de set. de 2018

A Via Láctea, o bêbado e o museu incendiado


Quando as pessoas se acomodam com a ideia de que a tragédia dos excluídos é culpa exclusiva deles, os excluídos, e não de um sistema que os pisoteia antes mesmo que possam erguer a cabeça para o mundo, não são só os museus, é o senso de dignidade que vira cinzas

Por José Carlos Fineis

Muito já se escreveu e falou sobre o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no começo de setembro. Mais de 20 milhões de objetos – alguns deles, únicos e de valor inestimável não só para o Brasil, mas para a Humanidade – foram perdidos para sempre. A negligência governamental, reflexo do desprezo da sociedade pela Cultura em sua concepção mais ampla, mais uma vez ficou patente. Faço estas declarações para não ser mal interpretado a partir do segundo parágrafo. Sou e sempre fui um defensor das artes e da Cultura. Acredito que os investimentos governamentais nessa área são ridiculamente pequenos e mal direcionados. Atribuo a esse desprezo pela Cultura e pela História grande parte das tragédias sociais, políticas e econômicas do Brasil de hoje.

Feitas essas considerações, fico à vontade para expor meu incômodo com um fato que passa despercebido, talvez por egoísmo, talvez por conformismo – com toda a certeza, por insensibilidade da maior parte de nós, brasileiros. Chora-se, lamenta-se pela perda de objetos inanimados. Fósseis, múmias, tronos. Nada a estranhar quanto a isto. Mas o que me causa estranheza não é a indignação com a perda do museu. É o silêncio da sociedade, dos intelectuais, dos políticos, dos religiosos e da imprensa com esta outra tragédia que se desenrola a céu aberto e à luz do dia, nas ruas e praças de nossas cidades: a deterioração de milhões de “peças” de nosso acervo humano. A desgraça de uma multidão de seres vivos, da espécie Homo sapiens, que definham diante de nossos olhos impassíveis.

Moro numa rua central, repleta de botecos. Nunca vi tantos seres humanos, quase todos jovens, jogados nas ruas, entregues ao álcool ou às drogas. Gente que grita com demônios imaginários, gente que dorme na calçada movimentada durante o dia, às vezes com um corote de cachaça ao lado, quase como se estivesse morta. Retalhos de vidas pelos quais os transeuntes passam indiferentes, como se ali não estivesse uma pessoa, como se aquele não fosse um irmão em humanidade, como o ser desfalecido, exposto ao sol ou ao frio da noite, não fosse mais do que uma subespécie animal inferior à dos cachorros – sim, porque dos cães de rua muitos ainda têm pena, e lhes dão comida, quando não os levam para casa.

Fico pensando: a que ponto chegamos, mesmo os mais sensatos de nós, para nos dessensibilizarmos quase que completamente diante da tragédia de nossos semelhantes, enquanto lamentamos a perda do trono do rei de Daomé – nós, que nem sabíamos que esse trono existia, ou que existiu um rei de um lugar chamado Daomé. Penso: por acaso desistimos de nós mesmos? Chegamos à conclusão de que certas pessoas não têm solução e de que é melhor deixá-las à própria sorte? Por que defendemos que investigações rigorosas sejam feitas para identificar as causas do incêndio do museu, mas não empregamos nosso tempo, nossa inteligência, nossos recursos para descobrir um jeito de devolver um ser humano à vida?

Meus olhos estão cansados de ver imagens tristes, como a da foto que fiz dias atrás na rua da minha casa, e que ilustra este artigo. Uma pessoa embrulhada em trapos e sacos plásticos, com a cabeça coberta pela camiseta, dormia na calçada com metade do corpo na chuva, numa noite em que a previsão de temperatura mínima era de 13 graus. Pensando no Museu Nacional e no homem da calçada, veio-me à memória uma frase lindíssima – talvez uma das mais pungentes que alguém já pronunciou –, e ainda mais surpreendente porque saiu dos lábios de um jornalista e dramaturgo conhecido por frases machistas e reacionárias: “Qualquer indivíduo é mais importante que toda a Via Láctea.”

Confesso que não sei o que levou Nélson Rodrigues a essa conclusão iluminada e em que contexto ele disse isso, mas considero que a frase se aproxima à grandiosidade de um versículo bíblico, como aquele segundo o qual todos somos deuses, porque “filhos do Altíssimo”, ou o outro que diz: “Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” O axioma de Nélson Rodrigues caberia, com perdão da blasfêmia, no Sermão da Montanha, cujo sentido, por sinal, é muito análogo a sua lógica, ao informar a nós, seres comuns, o quanto somos importantes. Deus – ensinou Jesus naquela ocasião – ama a todos assim como um pai ama seu filho. E, se às aves alimenta e aos lírios cobre de beleza, o que não fará por nós, seus filhos amados?

À parte as considerações bíblicas, a frase de Nélson Rodrigues pode ser tomada, também, como uma proposição científica. “Qualquer indivíduo é mais importante que toda a Via Láctea” nos adverte para o fato de que nossa galáxia, com seus bilhões de estrelas, suas nebulosas, planetas e buracos negros, não se compara em complexidade a um organismo vivo e pensante – por tudo o que conhecemos, o ápice da evolução, tenha ela origem divina ou natural. Um ser humano é algo tão maravilhoso que simplesmente não existe a possibilidade de compará-lo à matéria, seja ela uma estrela ou uma montanha. Mesmo com outras formas de vida, qualquer analogia se torna inviável, já que somos dotados de cérebros e consciência, sentimentos, imaginação e capacidade de amar.

Em que momento deixamos de enxergar a maravilha que é um ser humano e passamos a aceitar a hipótese de que membros de nossa espécie possam simplesmente perecer ao relento, sem que gastemos alguns minutos do nosso tempo para tentar tirá-los de seu torpor e perguntar: “Você está se sentindo bem?”, “Posso ajudá-lo de alguma maneira?”, “Você quer comer alguma coisa?” Se o trono do rei de Daomé fosse encontrado numa caçamba de entulho, descartado por engano por um funcionário relapso de museu, todos ficariam indignados. A imprensa clamaria por justiça em longas reportagens de TV e pomposos editoriais. Mas nosso amigo de dentes careados, bêbado e maltrapilho, ainda que seja comprovadamente mais importante do que toda a Via Láctea, pode morrer desamparado no frio da calçada, e seu desaparecimento sequer será percebido.

A esta altura, o leitor deve estar imaginando que condeno o dinheiro gasto com a Cultura e que tenho algo contra museus. Mas é exatamente o contrário. Acredito que as pessoas estão jogadas nas ruas porque não lhes foi dada uma oportunidade de se apaixonarem por algo que valesse a pena, quando crianças. Se houvesse investimento governamental em Cultura e Esportes – investimento de verdade, capaz de tornar esses bens acessíveis a todos –, haveria um número infinitamente menor de bêbados, drogados e loucos pelas ruas. Porque a criança, quando se apaixona por uma forma de arte ou de esporte, desenvolve anticorpos naturais contra o apelo da fuga, da curtição, do status ou do prazer fortuito proporcionado pelas drogas.

Aqui os extremos se encontram e se explicam. Perdemos o Museu Nacional porque não sabemos cuidar das pessoas. Deixamos que milhões de objetos raríssimos queimassem porque não conseguimos impedir que seres humanos se consumam desde a infância, sem que as partes do triângulo família-escola-governo se responsabilizem e façam algo de bom por eles. Pensando bem, é surpreendente que o Brasil ainda tenha museus, diante de nossa incompetência para cuidar da infância. Há décadas, governos eleitos com a promessa de melhorar a educação sucateiam a escola, e ninguém faz nada. Quando as pessoas se acomodam com a ideia de que a tragédia dos excluídos é culpa exclusiva deles, os excluídos, e não de um sistema que os pisoteia antes mesmo que possam erguer a cabeça para o mundo, não são só os museus, é o senso de dignidade que vira cinzas.

O incêndio do Museu Nacional deve, sim, cobrir-nos de vergonha. Mas não podemos permitir que a perda diária, sistemática e gradual de um acervo humano valioso nos seja menos vergonhosa, ou receba menos atenção. É hora de as pessoas inteligentes e comprometidas começarem a discutir políticas públicas que assegurem a toda criança a possibilidade de, ao menos, ter acesso a opções capazes de fazê-la enxergar um horizonte mais amplo, para além do submundo da rua, do cigarro, da maconha, das bebidas alcoólicas, do crack – enfim, desse pequeno universo que leva o indivíduo a fazer escolhas erradas, e a dormir na calçada e a morrer em vida, enquanto um museu pega fogo e a Via Láctea cintila com seus bilhões de sóis.


José Carlos Fineis é jornalista, produtor de vídeo, sócio da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda. e cofundador da página Sorocaba Plural - Jornalismo Cidadão no Facebook. Foto: José Carlos Fineis


8 de set. de 2018

Carta a um irmão machucado



Por José Carlos Fineis

Por acaso você perguntou
se o sangue que recebeu
era de um petista ou tucano?
Se o médico que o socorreu
era de esquerda ou de direita?
Se a enfermeira era lésbica?
Se o enfermeiro era gay?
Se os que consertaram você
eram pacifistas ou belicosos?
Se os que salvaram sua vida
eram comunas ou capitalistas?

Aprenda, meu irmão, uma coisa
que aprendi antes de você:
neste planeta minúsculo e belo
somos -- todos -- interdependentes
Respiramos o mesmo ar
pisamos no mesmo chão
aspiramos à mesma liberdade
Cada qual à sua maneira
sonhamos com dias melhores
Damos sangue para salvar vidas
e suor para o país funcionar 
Com o braço direito e o esquerdo
giramos as engrenagens do mundo

Porque nos permitiram viver
quando estávamos por um triz
o mínimo a fazer é nos amar
acima dos dogmas e das diferenças
E entender que sem os outros
por mais opostos que sejam
nossas vidas não são mais
do que uma flor em um copo sem água
Nós que fomos salvos por tantos
de quem sequer sabemos os nomes
temos o dever de nos curvar
a cada um, e louvar pela eternidade
a humanidade que existe no outro

Acima de ideologias e rancores
e diferentes formas de ver e pensar o mundo
cultivar o amor
como algo verdadeiramente sagrado
Essa é a grande lição
a ser aprendida.
-- Aprenda-a, como eu aprendi,
meu irmão machucado

(setembro de 2018)