24 de set. de 2018

A Via Láctea, o bêbado e o museu incendiado


Quando as pessoas se acomodam com a ideia de que a tragédia dos excluídos é culpa exclusiva deles, os excluídos, e não de um sistema que os pisoteia antes mesmo que possam erguer a cabeça para o mundo, não são só os museus, é o senso de dignidade que vira cinzas

Por José Carlos Fineis

Muito já se escreveu e falou sobre o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no começo de setembro. Mais de 20 milhões de objetos – alguns deles, únicos e de valor inestimável não só para o Brasil, mas para a Humanidade – foram perdidos para sempre. A negligência governamental, reflexo do desprezo da sociedade pela Cultura em sua concepção mais ampla, mais uma vez ficou patente. Faço estas declarações para não ser mal interpretado a partir do segundo parágrafo. Sou e sempre fui um defensor das artes e da Cultura. Acredito que os investimentos governamentais nessa área são ridiculamente pequenos e mal direcionados. Atribuo a esse desprezo pela Cultura e pela História grande parte das tragédias sociais, políticas e econômicas do Brasil de hoje.

Feitas essas considerações, fico à vontade para expor meu incômodo com um fato que passa despercebido, talvez por egoísmo, talvez por conformismo – com toda a certeza, por insensibilidade da maior parte de nós, brasileiros. Chora-se, lamenta-se pela perda de objetos inanimados. Fósseis, múmias, tronos. Nada a estranhar quanto a isto. Mas o que me causa estranheza não é a indignação com a perda do museu. É o silêncio da sociedade, dos intelectuais, dos políticos, dos religiosos e da imprensa com esta outra tragédia que se desenrola a céu aberto e à luz do dia, nas ruas e praças de nossas cidades: a deterioração de milhões de “peças” de nosso acervo humano. A desgraça de uma multidão de seres vivos, da espécie Homo sapiens, que definham diante de nossos olhos impassíveis.

Moro numa rua central, repleta de botecos. Nunca vi tantos seres humanos, quase todos jovens, jogados nas ruas, entregues ao álcool ou às drogas. Gente que grita com demônios imaginários, gente que dorme na calçada movimentada durante o dia, às vezes com um corote de cachaça ao lado, quase como se estivesse morta. Retalhos de vidas pelos quais os transeuntes passam indiferentes, como se ali não estivesse uma pessoa, como se aquele não fosse um irmão em humanidade, como o ser desfalecido, exposto ao sol ou ao frio da noite, não fosse mais do que uma subespécie animal inferior à dos cachorros – sim, porque dos cães de rua muitos ainda têm pena, e lhes dão comida, quando não os levam para casa.

Fico pensando: a que ponto chegamos, mesmo os mais sensatos de nós, para nos dessensibilizarmos quase que completamente diante da tragédia de nossos semelhantes, enquanto lamentamos a perda do trono do rei de Daomé – nós, que nem sabíamos que esse trono existia, ou que existiu um rei de um lugar chamado Daomé. Penso: por acaso desistimos de nós mesmos? Chegamos à conclusão de que certas pessoas não têm solução e de que é melhor deixá-las à própria sorte? Por que defendemos que investigações rigorosas sejam feitas para identificar as causas do incêndio do museu, mas não empregamos nosso tempo, nossa inteligência, nossos recursos para descobrir um jeito de devolver um ser humano à vida?

Meus olhos estão cansados de ver imagens tristes, como a da foto que fiz dias atrás na rua da minha casa, e que ilustra este artigo. Uma pessoa embrulhada em trapos e sacos plásticos, com a cabeça coberta pela camiseta, dormia na calçada com metade do corpo na chuva, numa noite em que a previsão de temperatura mínima era de 13 graus. Pensando no Museu Nacional e no homem da calçada, veio-me à memória uma frase lindíssima – talvez uma das mais pungentes que alguém já pronunciou –, e ainda mais surpreendente porque saiu dos lábios de um jornalista e dramaturgo conhecido por frases machistas e reacionárias: “Qualquer indivíduo é mais importante que toda a Via Láctea.”

Confesso que não sei o que levou Nélson Rodrigues a essa conclusão iluminada e em que contexto ele disse isso, mas considero que a frase se aproxima à grandiosidade de um versículo bíblico, como aquele segundo o qual todos somos deuses, porque “filhos do Altíssimo”, ou o outro que diz: “Não sabeis vós que sois o templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” O axioma de Nélson Rodrigues caberia, com perdão da blasfêmia, no Sermão da Montanha, cujo sentido, por sinal, é muito análogo a sua lógica, ao informar a nós, seres comuns, o quanto somos importantes. Deus – ensinou Jesus naquela ocasião – ama a todos assim como um pai ama seu filho. E, se às aves alimenta e aos lírios cobre de beleza, o que não fará por nós, seus filhos amados?

À parte as considerações bíblicas, a frase de Nélson Rodrigues pode ser tomada, também, como uma proposição científica. “Qualquer indivíduo é mais importante que toda a Via Láctea” nos adverte para o fato de que nossa galáxia, com seus bilhões de estrelas, suas nebulosas, planetas e buracos negros, não se compara em complexidade a um organismo vivo e pensante – por tudo o que conhecemos, o ápice da evolução, tenha ela origem divina ou natural. Um ser humano é algo tão maravilhoso que simplesmente não existe a possibilidade de compará-lo à matéria, seja ela uma estrela ou uma montanha. Mesmo com outras formas de vida, qualquer analogia se torna inviável, já que somos dotados de cérebros e consciência, sentimentos, imaginação e capacidade de amar.

Em que momento deixamos de enxergar a maravilha que é um ser humano e passamos a aceitar a hipótese de que membros de nossa espécie possam simplesmente perecer ao relento, sem que gastemos alguns minutos do nosso tempo para tentar tirá-los de seu torpor e perguntar: “Você está se sentindo bem?”, “Posso ajudá-lo de alguma maneira?”, “Você quer comer alguma coisa?” Se o trono do rei de Daomé fosse encontrado numa caçamba de entulho, descartado por engano por um funcionário relapso de museu, todos ficariam indignados. A imprensa clamaria por justiça em longas reportagens de TV e pomposos editoriais. Mas nosso amigo de dentes careados, bêbado e maltrapilho, ainda que seja comprovadamente mais importante do que toda a Via Láctea, pode morrer desamparado no frio da calçada, e seu desaparecimento sequer será percebido.

A esta altura, o leitor deve estar imaginando que condeno o dinheiro gasto com a Cultura e que tenho algo contra museus. Mas é exatamente o contrário. Acredito que as pessoas estão jogadas nas ruas porque não lhes foi dada uma oportunidade de se apaixonarem por algo que valesse a pena, quando crianças. Se houvesse investimento governamental em Cultura e Esportes – investimento de verdade, capaz de tornar esses bens acessíveis a todos –, haveria um número infinitamente menor de bêbados, drogados e loucos pelas ruas. Porque a criança, quando se apaixona por uma forma de arte ou de esporte, desenvolve anticorpos naturais contra o apelo da fuga, da curtição, do status ou do prazer fortuito proporcionado pelas drogas.

Aqui os extremos se encontram e se explicam. Perdemos o Museu Nacional porque não sabemos cuidar das pessoas. Deixamos que milhões de objetos raríssimos queimassem porque não conseguimos impedir que seres humanos se consumam desde a infância, sem que as partes do triângulo família-escola-governo se responsabilizem e façam algo de bom por eles. Pensando bem, é surpreendente que o Brasil ainda tenha museus, diante de nossa incompetência para cuidar da infância. Há décadas, governos eleitos com a promessa de melhorar a educação sucateiam a escola, e ninguém faz nada. Quando as pessoas se acomodam com a ideia de que a tragédia dos excluídos é culpa exclusiva deles, os excluídos, e não de um sistema que os pisoteia antes mesmo que possam erguer a cabeça para o mundo, não são só os museus, é o senso de dignidade que vira cinzas.

O incêndio do Museu Nacional deve, sim, cobrir-nos de vergonha. Mas não podemos permitir que a perda diária, sistemática e gradual de um acervo humano valioso nos seja menos vergonhosa, ou receba menos atenção. É hora de as pessoas inteligentes e comprometidas começarem a discutir políticas públicas que assegurem a toda criança a possibilidade de, ao menos, ter acesso a opções capazes de fazê-la enxergar um horizonte mais amplo, para além do submundo da rua, do cigarro, da maconha, das bebidas alcoólicas, do crack – enfim, desse pequeno universo que leva o indivíduo a fazer escolhas erradas, e a dormir na calçada e a morrer em vida, enquanto um museu pega fogo e a Via Láctea cintila com seus bilhões de sóis.


José Carlos Fineis é jornalista, produtor de vídeo, sócio da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda. e cofundador da página Sorocaba Plural - Jornalismo Cidadão no Facebook. Foto: José Carlos Fineis


8 de set. de 2018

Carta a um irmão machucado



Por José Carlos Fineis

Por acaso você perguntou
se o sangue que recebeu
era de um petista ou tucano?
Se o médico que o socorreu
era de esquerda ou de direita?
Se a enfermeira era lésbica?
Se o enfermeiro era gay?
Se os que consertaram você
eram pacifistas ou belicosos?
Se os que salvaram sua vida
eram comunas ou capitalistas?

Aprenda, meu irmão, uma coisa
que aprendi antes de você:
neste planeta minúsculo e belo
somos -- todos -- interdependentes
Respiramos o mesmo ar
pisamos no mesmo chão
aspiramos à mesma liberdade
Cada qual à sua maneira
sonhamos com dias melhores
Damos sangue para salvar vidas
e suor para o país funcionar 
Com o braço direito e o esquerdo
giramos as engrenagens do mundo

Porque nos permitiram viver
quando estávamos por um triz
o mínimo a fazer é nos amar
acima dos dogmas e das diferenças
E entender que sem os outros
por mais opostos que sejam
nossas vidas não são mais
do que uma flor em um copo sem água
Nós que fomos salvos por tantos
de quem sequer sabemos os nomes
temos o dever de nos curvar
a cada um, e louvar pela eternidade
a humanidade que existe no outro

Acima de ideologias e rancores
e diferentes formas de ver e pensar o mundo
cultivar o amor
como algo verdadeiramente sagrado
Essa é a grande lição
a ser aprendida.
-- Aprenda-a, como eu aprendi,
meu irmão machucado

(setembro de 2018)


27 de jul. de 2018

Fake news: o problema é mais embaixo


Quase todos os veículos se dizem imparciais – é como que uma formalidade, por uma questão de imagem pública –, mas os que praticam verdadeiramente a imparcialidade são raros. Agem mais ou menos como o Millôr quando se definiu, ironicamente, como um homem democrático, que respeitava as opiniões de todos, desde que concordassem com ele.

Por José Carlos Fineis

Fake news é mesmo um problemão. Mas a maior fake news de todas é aquela em que um veículo afirma ser democrático e pluralista e, no dia a dia, pratica exatamente o contrário: exclui segmentos, abraça ideologias de classe, direciona a pauta para não dar espaço a quem é de outra corrente, coloca interesses de grupos e pessoas acima dos interesses coletivos, criminaliza movimentos legítimos, põe em evidência apenas aqueles que representam sua forma de ver o mundo, acoberta as falhas dos amigos e prega "o rigor da lei" para os que pensam diferente – tudo isso, sob uma falsa aura de independência e imparcialidade.

Não estou aqui dando indiretas para este ou aquele veículo, mesmo porque os veículos mudam com o tempo: em algumas fases fazem bom jornalismo; em outras, fazem bobagem. Então, não há como avaliá-los sem considerar, pelo menos, sua importância pretérita e, confiando que os comportamentos bizarros não durem para sempre, sua capacidade potencial de retomarem o caminho da honestidade jornalística e voltarem a ser úteis um dia. "Veja" e "Istoé", por exemplo, já foram grandes revistas. Hoje nem sei como definir o jornalismo que praticam. Jornalismo de nicho, talvez. Mas, se sobreviverem às opções erradas que seus dirigentes fizeram, podem ainda voltar a ter alguma credibilidade e prestar bons serviços aos leitores.

(Um parêntese importante. Essa constatação vale também para a TV, que deve ser a única ou principal fonte de informação de 90% dos brasileiros. Por acaso, centrei o foco, neste artigo, na imprensa escrita. Porém, o mesmo processo ocorre em muitos telejornais. O poder que o Jornal Nacional tem sobre a sociedade brasileira é descomunal. E todos sabem, ou já deveriam ter percebido, que ali a pauta é bem dirigida. Não existe uma linha que não corresponda à agenda da Rede Globo, a qual, por sua vez, dá até medo de pensar em quais agendas está atrelada.)

O fake – não as fake news, mas o fake journalism dos órgãos ditos sérios, ou seja, o próprio processo de seleção, abordagem, produção e apresentação das notícias, mais intestinal e perigoso do que as fake news – é um mal que assola a imprensa, à direita e à esquerda. Quase todos os veículos se dizem imparciais – é como que uma formalidade, por uma questão de imagem pública –, mas os que praticam verdadeiramente a imparcialidade são raros. Agem mais ou menos como o Millôr quando se definiu, ironicamente, como um homem democrático, que respeitava as opiniões de todos, desde que concordassem com ele.

De toda forma, é preciso acreditar no poder dos leitores de regenerar o jornalismo de fora para dentro, diante da frouxidão dos que, por opção, se recusam a fazê-lo de dentro para fora. E isso se faz prestigiando o que existe de bom e honesto no meio, não aceitando gato por lebre, mostrando que o verdadeiro patrão, em qualquer veículo, não é nem o dono, nem o gerente, nem o editor-chefe. É o leitor. Sem leitor, literalmente, não tem negócio. E a mentira repetida mil vezes não se torna verdade, como querem crer os discípulos de Goebbels. Sem leitores, ela ecoa no vazio.

(Ilustração: Pinóquio por Enrico Mazzanti, Florença, 1883)

José Carlos Fineis é jornalista, editor de livros e produtor de vídeos, e sócio-proprietário da Loja de Ideias Produção Audiovisual, Jornalismo e Edição Ltda - www.lojadeideias.com.br